DOIS JULHOS

O bombardeio de 1924

Morando há mais de vinte anos em um prédio que dá vista tanto para a Paulista como para o túnel da Av. 9 de Julho, já estávamos acostumados, a cada ano, no aniversário da chamada “Revolução Constitucionalista”, ver um grupo de velhinhos “ex-combatentes” à frente de uma bandinha, para comemorar o início da dita cuja.

Ano a ano diminuía o grupo. Claro, quem nasceu em 1932 teria hoje 85 anos e, considerando-se que tivesse pelo menos quinze anos naquela data, bateria hoje na casa dos cem.

Mobilização de 1932

Quando os vereadores paulistanos resolveram prestar uma homenagem a um dos prestigiados médicos do Hospital Sírio-Libanês e aprovaram o nome oficial de Daher Cutait para o túnel, foi o maior escarcéu. O túnel acabou oficialmente como “Túnel 9 de Julho – Dr. Daher Cutait”. Recentemente notei que uma rua atrás do hospital, que antes se chamava “Dr. Nicolau dos Santos”, homenageando um homônimo do famoso juiz, o “Lalau”, havia sido rebatizada com o nome do mesmo médico.

Há dois ou três anos atrás, a bandinha e os velhotes deixaram de aparecer.

No romance “A Mãe da Mãe de sua Mãe e suas Filhas”, Maria José Silveira faz uma breve descrição de outro julho, o de 1924. No dia 5 daquele junho estalou outra revolução em S. Paulo. Foi uma das mais cruentas revoltas do tenentismo, movimento dos jovens militares e o maior conflito bélico que atingiu a capital paulista, deixando mais de mil mortos e quatro mil feridos. Em boa parte foram populares atingidos pela resposta do governo federal, que bombardeou a cidade com canhões e com aviação, em um dos primeiros ensaios da tática que se tornaria célebre na Guerra Civil espanhola e na II Guerra Mundial: o bombardeio da população civil. O “Bombardeio Terrificante” e os canhões alcançaram principalmente os bairros operários do Brás e da Mooca, mas atingiram também o centro e o bairro de Perdizes.

Depois de 23 dias, os revoltosos abandonaram a cidade e, chefiados por Isidoro Dias Lopes e Miguel Costa marcharam para o sudeste, onde acabaram se reunindo com as tropas gaúchas revoltadas sob o comando de Luís Carlos Prestes, iniciando a marcha que arrancaria pelos sertões, até se internar na Bolívia, já em 1927. Entre os seus componentes, outros tenentes que depois apoiaram decisivamente Getúlio Vargas: Juarez Távora, Eduardo Gomes, Isidoro e Miguel Costa. Os dois primeiros, golpistas renitentes, estavam presentes no golpe de 1964.

Nem vou discutir aqui as complexidades do tenentismo, das revoluções de 1930 e da paulista de 1932. Não é o lugar e nem tenho competência para isso.

Mas fico cá matutando.

Qual a razão da Revolução de 1924 ser completa e totalmente esquecida e a de 1932 até hoje louvada em prosa e verso (do Guilherme de Almeida, por exemplo, que escreveu até letra de hinos)?

Entretanto, algumas pistas existem.

O tenentismo não era, com certeza um “movimento popular”. Mas, de fato, todos sofriam com a política oligárquica do “café com leite” (exceto, claro, quem se beneficiava com ela). Esse foi um dos motivos que impulsionaram a vitória do Getúlio e da sua Revolução, depois das eleições manipuladas para dar vitória a Julio Prestes, ex-governador paulista.

Desde o início do século XX, a agricultura paulista, dominada pelos cafeicultores – que controlavam a Sociedade Rural Brasileira – dependia de uma “política de valorização do café”. Uma série de medidas que obrigava os governos (estadual e federal) a adquirir os estoques excedentes de café, ainda mais crescentes depois da crise de 1929. As ameaças a essa política e, principalmente, à perda da influência da cafeicultura paulista no governo federal foi, sem dúvida um dos motivos “ocultos” de 1932. Os mineiros (que eram sócios minoritários do “café com leite”) acabaram conseguindo uma acomodação com Getúlio, através de Benedito Valadares.

Mas a oligarquia paulista estava profundamente irritada por não colocar um de seus representantes no governo paulista e, mais ainda, pela inabilidade desastrosa dos interventores nomeados por Getúlio. Até a coisa estourar.

Some-se a isso um sentimento crescente de secessão.  A lenda mitológica da “São Paulo locomotiva que arrasta vinte e cinco vagões vazios” convenientemente esquece que quem comprava e compra a produção paulista são os que moram em outros estados (e as brigas pela repartição do ICM continuam até hoje…).

Intelectuais importantes, como Monteiro Lobato e Mário de Andrade chegaram a se posicionar (principalmente o primeiro) pela secessão.

Deu no que deu.

Mas o fato é que, enquanto 1924 foi, de certo modo, movimento estranho às paulistices e mais dentro de um movimento nacionalmente mais amplo, a de 1932 interessava essencialmente à oligarquia paulista. As esperadas adesões de outros estados não vieram (só o numericamente insignificante Mato Grosso apoiou os paulistas), e Vargas mobilizou o resto do país contra o secessionismo que, verdadeiro ou não, extenso ou não, foi um dos mobilizadores do resto do país contra a rebelião.

Então, não é de admirar que o 5 de Julho seja sistematicamente obliterado, e o 9 de Julho tão celebrado pelas classes dominantes paulistas.

Tudo isso é apenas mais uma pequena amostra dos processos de ocultação e valorização da história que continuam sendo feitas.

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