Mais um que se foi.
Ontem, dia 31, morreu Maurício Segall, depois de longa enfermidade. Fui ao velório cedo, no Museu Lasar Segall, assinei o livro de condolências e fui embora. Vou a velórios (esse foi o segundo em quinze dias, depois do Marco Aurelio Garcia), mas não fiqco muito tempo por lá. Presto homenagem ao amigo morto, e não me sinto bem no evento social em que a cerimônia se transforma. Nada contra, é questão pessoal.
Conheci Segall em 1971 quando, depois de preso e torturado na OBAN e de passar pelo DOPS, finalmente fui transferido para o Presídio Tiradentes. Hoje demolido, antigo mercado de escravos, o Tiradentes fora o local de prisão de Monteiro Lobato, Caio Prado Jr. e muitos outros presos. Eram dois pavilhões. O maior guardava ainda presos comuns, muitos dos quais foram dali retirados e assassinados pelo Esquadrão de Morte, do famigerado Fleury. No pavilhão menor, na cela 6, para onde me mandaram, encontrei, além do Maurício, os arquitetos ligados à ALN, Sérgio Ferro, Sérgio Souza Lima, Carlos Henrique Heck, Rodrigo Lefevre e Julio Barone.
Preso político, torturado pela equipe do Fleury, Maurício Segall chegou a ver Joaquim Câmara Ferreira, o “Velho” que substituiu Marighella no comando da ALN, nos seus últimos momentos de vida, arfando prestes a morrer deitado em uma mesa em uma prisão clandestina, como relata Jacob Gorender em seu “Combate nas Trevas”.
Estabelecemos uma convivência amistosa e muito produtiva, naquelas circunstâncias. Aprendi muito com todos, especialmente com Ferro (que produziu quadros excepcionais nesse período, e que, anos depois, participou de um Jogo de Ideias, juntamente comigo e com Alípio Freire, e mediação de Claudiney Ferreira, cujo vídeo pode ser visto aqui e aqui. Infelizmente não achei vídeos com o Maurício Segall, no caso falando sobre a obra do pai, Lasar Segall, e do Museu que foi fundado graças à iniciativa da família, no caso Maurício e seu irmão Oscar, principalmente.
No Tiradentes, Maurício já mantinha conversas com o irmão, que então era presidente da Caixa Econômica de S. Paulo, personagem profundamente conservador, sobre o modo de viabilizar a doação da casa e do acervo familiar do grande Lasar Segall. A preocupação era a de que a forma da doação impedisse a dispersão, a dilapidação da contribuição do Lasar Segall para as artes e a cultura brasileiras.
Maurício era o mais velho da cela. Tinha suas idiossincrasias, que administramos sempre através do diálogo. Por exemplo, circulava pelo pavilhão uma pequena TV, branco e preto, que ficava um dia em cada cela, em rodízio. Maurício detestava TV, e não queria que suas leituras fossem prejudicadas pelo barulho. A solução foi montar uma traquitana que subdividia o fone de ouvido, o “egoísta”, com os fios correndo por toda a cela, até cada um no seu “mocó” (o beliche de cada preso), enquanto Maurício fechava a cortina do seu e continuava lendo. Ninguém era fã da TV, mas encarávamos aquilo como uma diversão na rotina da prisão.
Anos depois, já soltos, visitei Maurício no museu, e de vez em quando nos encontrávamos em vários eventos e atividades do PT.
Muito generoso, ele comemorou um de seus aniversários com uma bela festa em uma gafieira em Pinheiros (não existe mais), onde reuniu familiares, amigos das artes plásticas, do teatro (foi diretor do Theatro S. Pedro) e da militância. Reunidos, dançando e desfrutando da generosidade do Maurício, todos tiveram uma noite divertida.
Uma vez, em um evento na Cinemateca Brasileira, encontrei o Maurício que estava tão indignado como eu com o que um conhecido cronista d’O Globo havia escrito. Era uma crônica que comentava o fato de um dos filhos, creio que do Sadam Hussein ou do Kadafi, que controlava a Federação de Futebol, haver torturado jogadores que não tiveram o desempenho esperado. O cronista – que diziam ser boa gente – comentava jocosamente que essa solução de torturar incompetentes podia ser aplicada a nem me lembro que jogador de um time de futebol carioca.
Estávamos indignados, e chegamos a pensar em abrir um processo contra o sujeito por apologia à tortura. Nós sabíamos o que era aquilo com que o tal cronista fazia brincadeiras…
Maurício era poeta, e sempre convidava os amigos para os lançamentos, não em livrarias. Geralmente eram bares ou locais de boemia, boa bebida e boa comida… Lembro do que aconteceu em um bar no Largo de Santa Cecília e outro no Brahma, evento que ele mandou fotografar e depois enviou cópia para cada um, e que reproduzo neste post.
Foi um personagem extremamente coerente e combativo, defendia suas ideias com veemência e decisão. Mas era também uma máquina da promoção da cultura brasileira e, em particular, da paulista. A doação memorável da casa e do acervo para constituir o Museu Lasar Segall, numa época em que não havia benefícios fiscais para isso, é um desses raros exemplos de desprendimento e compreensão de que a arte, no caso a feita por seu pai, deveria ter uma apropriação social, e não simplesmente ser objeto de decoração e propriedade apreciada por admiradores e colecionadores ricos. Maurício Segall foi velado na casa da sua infância.
Não conhecia a história dele. Nem sabia que tinha sido preso. Adoro os quadros do pai. Achei muito bonita a generosidade dele. Qualidade que anda rara.
Muito obrigado pelo texto. Realmente ele dedicou sua vida e deu seu sangue, literalmente, como tantas outras pessoas memoráveis – o autor do artigo acima, por exemplo – a este país e à cultura em geral. Eu lamentaria muito se o país não fizesse jus a este sacrifício. Resta ver. Muito obrigado Felipe.