AMBIGUIDADES – OU SIGNIFICADOS TRANSFORMADOS

O Ídolo, dirigido por Hany Abu-Assad, de quem vimos o belo Paradise Now, é realização de um diretor que não teme temas polêmicos. Paradise Now tratava do recrutamento de dois jovens palestinos como homens-bomba, em um retrato brilhante do que leva aqueles jovens desesperados a sacrificar suas vidas por uma causa.

O Ídolo é outra coisa. Fui ver o filme por conta do diretor, apesar da sinopse não me atrair nem um pouco. Conta a história de Mohammed Assaf, jovem palestino, que vence a segunda temporada da versão árabe do programa de “descoberta de talentos”, o Ídolo. O programa, gerado no Líbano, é uma franquia que tem a mesma origem desses que passam por aqui, nos quais jovens cantores passam por seleções sucessivas até a final. Coisa detestável e brega, para meu gosto. O programa joga com as ambições dos jovens (às vezes nem tão jovens assim) de ficarem famosos e ricos com suas vozes.

O filme conta a história de Assaf, e termina por ser uma interessante mostra de ambiguidade de formas de luta, e de como até coisas como esse tipo de programas de televisão podem ter múltiplas camadas de significado.

A história de Assaf é bem representativa dos sofrimentos pelos quais passaram os palestinos desde a Naqba, a “catástrofe” que foi, para eles, o êxodo forçado pelo avanço do exército israelense na guerra de 1948 (não vou discutir isso aqui). Assaf nasceu em Misrata, na Líbia, filho de pais palestinos, onde viveu até os quatro anos de idade. Seus parentes voltaram para Gaza, onde ele cresceu no campo de refugiados de Khan Younis, em uma família de classe média (sua mãe era professora de matemática). A família materna era originalmente da aldeia de Bayt Daras, que foi tomada e despopulada pelo exército israelense em 1948. A do pai era originária de Beersheba, conhecida como “capital do Negev”, hoje também ocupada por Israel. Todos, portanto, desterrados e expulsos de seus lares. Segundo a mãe, Assaf cantava desde criança, com voz muito bonita e forte, como a de um adulto.

O filme narra basicamente a história de como Assaf começa a cantar, acompanhado de irmãos e amigos em uma banda improvisada, até seu sucesso na TV. Destaca-se no trecho inicial o desempenho da jovem atriz Hiba Attahllah, como Nour (Luz, em árabe), irmã de Assaf e um verdadeiro dínamo que impulsiona sua vocação, e morre de insuficiência renal ao não conseguir um rim para transplante nas difíceis condições de Gaza. Uma pequena atriz que já gostaria de rever em outro filme.

Essa etapa do filme mostra uma Gaza que já sofria com o bloqueio, e onde as condições de vida eram difíceis. Achei interessante que, ao contrário do que a propaganda deixa entender, os muçulmanos de Gaza desfrutam de muita liberdade pessoal, embora condicionadas pelo machismo árabe (mais árabe que muçulmano). Aparecem mulheres com e sem hijab circulando, embora se note a tensão que já existe entre os grupos mais religiosos em relação à música. Assaf é elogiado (e remunerado), quando atua como cantor na mesquita, interpretando passagens do Alcorão durante as cerimônias. Mas um de seus amigos, Omar, que se torna religioso, abandona a banda alegando que a música em geral é obra do diabo… Durante sua carreira, inclusive como cantor em casamentos, Assaf enfrentou problemas com as forças paramilitares palestinas de Gaza, tendo sido detido várias vezes, ainda que brevemente (isso não aparece no filme).

Depois da morte de Nour, o filme dá um salto de doze anos, e o que se vê é uma Gaza pesadamente destruída, isolada e cercada. Ainda assim, Assaf estuda na Universidade da Cidade de Gaza, ao mesmo tempo que trabalha como taxista.

O filme conta como ele, estimulado por Amal, uma jovem que também tinha problemas renais, decide concorrer no “Arab Idol”. Amal o convence, no filme, ao lhe dizer que se sentia feliz ao ouvi-lo cantar, e que era preciso “dar-nos algo de que possamos nos orgulhar no meio de tantos problemas”.

Vemos as dificuldades que ele enfrenta para sair de Gaza, usando um visto falsificado (com ajuda de um contrabandista que anteriormente os havia roubado ao não entregar os instrumentos musicais encomendados) e a história rocambolesca (mas real), de como ele conseguiu participar do programa.

Ao chegar no Cairo, para a primeira etapa de seleção, os passes para participar já estavam esgotados. Ele pula o muro do teatro, e lá dentro acaba conhecendo outro palestino que lhe cede o passe, alegando que não tinha chances de ser selecionado mas sabia que ele poderia prosseguir. E é o que, previsivelmente, acontece.

Assaf vai passando pelas sucessivas seleções e chega à final, quando canta uma música de caráter nacionalista palestino, Aali al-keffiyeh (“Levante o Kafié” – o lenço palestino que Arafat tornou famoso). Aqui a interpretação de Assaf, no YouTube. Palestina,

Sua apresentação final, que aparece no filme de forma semidocumental, provocou uma enorme comoção não apenas na Palestina como em todo mundo árabe e na diáspora palestina. O extraordinário foi que, em vista da tensão entre o governo da Faixa de Gaza, controlado pelo Hamas, e a Autoridade Palestina, chefiada pela Fatah, a apresentação de Assaf foi assistida e comemorada por todas as facções palestinas. Logo ele passou a ser conhecido como Assaf Hilm Falastine (Assaf é o sonho da Palestina) e foi nomeado Embaixador da Boa Vontade, pela Agência da ONU que ajuda os refugiados. Mais tarde recebeu um passaporte diplomático da Autoridade Palestina (o que não impede que seja submetido a todas as restrições e dificuldades impostas por Israel para que entre em Gaza).

O sucesso de Assaf gerou algumas consequências políticas importantes, e é uma contribuição para a construção da unidade entre as diferentes forças palestinas. A própria direção do Hamas, que o deteve várias vezes tentando dissuadi-lo de cantar fora das mesquitas, acabou por reconhecer seu trabalho como “embaixador da arte palestina”.

O filme, e a história de Assaf, me transmitiram uma enorme sensação de ambiguidade. Um programa de televisão desse tipo, desenhado para estimular a mais básica e vulgar ambição pelo sucesso, acaba – pelo menos momentaneamente – se transformando em poderoso veículo de construção de orgulho e unidade entre o sofrido povo palestino.

Vale a pena ver O Ídolo, por tudo isso, e também pela qualidade da direção de Hany Abu-Assad e de seus atores.

Um filme belo e emocionante.

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