Somos, eu e a Maria José, apaixonados por São Paulo. Nasci em Manaus e ela é goiana. Nos encontramos em Brasília, na Universidade e começando a trabalhar como jornalistas. Moramos em S. Paulo – quando fui preso pela ditadura e ela viveu clandestina em São Bernardo – e depois passamos quatro anos no Peru. De volta, moramos quase dez anos no Rio de Janeiro. Mas estamos, por decisão própria, morando em S. Paulo desde 1984.
E adoramos a cidade.
Não por sua beleza paisagística. O Rio é imbatível nesse quesito (por mais que os cariocas se esforcem, não conseguem estragar de todo a paisagem).
Amamos São Paulo pela sua dinâmica e por sua diversidade. Pelo povo que luta e pelo povo que se diverte. Pela vida cultural. Pelas livrarias. Pela Biblioteca Mário de Andrade. Pelo Centro Cultural Vergueiro. Pela Avenida Paulista fechada aos domingos e pelas ciclovias. Pela diversidade do povo que encontramos pelas ruas: todas as cores, todos os gêneros.
Sofremos com a cidade e sua população. Os congestionamentos. A poluição. A miséria que se torna visível nas esquinas, a ocupação desordenada de ruas e praças.
Evidentemente, gostaríamos de ter uma cidade mais limpa, mais organizada, mais amistosa para com sua população. Mais ordenada em seu crescimento.
Mas sabemos muito bem que essa balbúrdia, e até essa incontrolável sujeira que resiste a exércitos de varredores, garis e máquinas de varrer; as pichações que extravasam o que os jovens, rebeldes sem causa, talvez, deixam pela cidade; o asfalto deformado por caminhões e ônibus que não deixam espaço nem mesmo para uma manutenção correta; tudo isso faz parte da dinâmica da cidade.
São Paulo não seria o que é, esse grande centro de produção simultânea de riqueza e miséria, de cultura e ignorância, de consciência política e conservadorismo, do chique e do mau-gosto, se não fosse assim diversa, fragmentada. Se não fosse essa fênix em permanente morte e ressurreição, onde se observam extremos de despreendimento e egoísmo, de beleza e feiúra.
Essa Pauliceia desvairada do Mário de Andrade, que a Maria José retraduziu no seu romance “Pauliceia de Mil Dentes” enfrenta, agora, um novo desafio: um alcaide que quer transformá-la em “Cidade Linda”.
O desafio, definitivamente, não é do alcaide. O desafio é da cidade. Resistir a essa maquiagem que pretende esconder o que o novo administrador considera feio; e que começa com a pirotecnia de se vestir de gari (como se fosse um palhaço), para fingir que varre durante dez segundos.
Ora, ora, ora.
Mas São Paulo resistirá.
Essa história de Cidade Linda sempre me lembra (por quê?) a famosa linha do Hamlet: “Há algo de podre no Reino da Dinamarca”.
CidadeSempre haverá algo – muito – de podre nessa ideia de uma cidade limpinha e cheirosa. Talvez aquela que poderia ser vítima de uma bomba de nêutrons, com todos mortos e o espaço desinfetado.
O Humberto Werneck desafiou seus leitores, no FaceBook, a comentar sobre o assunto. Eu comentei que se tratava de uma política higienista que queria esconder os pobres. Uma senhora respondeu a meu comentário (aliás, sobre a remoção dos moradores de rua nos arredores da Praça 14Bis), perguntando se eu morava por perto por que ela, com duas filhas, não conseguia descer na parada de ônibus ali, supostamente com medo daqueles moradores.
Moro perto dali. Confesso que raramente uso ônibus, mas desci naquele ponto algumas vezes, em particular quando queria comprar alguma coisa no supermercado da praça. E me sinto mais ameaçado quando passo de automóvel por ali. Nessas ocasiões eu viro um alvo de verdade.
Mas a observação da senhora, evidente apoiadora da limpeza do alcaide, me remeteu diretamente a uma crônica recente do Veríssimo, no qual ele comentava sobre a questão da empatia (era a propósito do massacre de Manaus).
A questão é que essas pessoas não tem a menor empatia para com os pobres. Para eles, estar na rua é sinônimo de preguiça, drogadição, alcoolismo. Esquecem simplesmente que vivem em um país com altíssimos índices de desigualdade social, miséria e quebra das estruturas tradicionais que apoiavam a existência de tantas famílias expulsas do campo, e atraídas pelo cintilar da metrópole.
O egoísmo dessa gente supera a presença de uma característica essencial que nos faz humanos: a empatia para com o próximo. Vai ver que são carolas que não perdem a missa dominical, e certamente foram para as passeatas pedir o golpe.
A canção emblemática do Caetano Veloso se faz mais atual que nunca. Nem tanto pela esquina da Ipiranga com a São João, e sim pelo conjunto da letra. Nós que a cantarolamos, principalmente a primeira estrofe, devemos nos lembrar da letra inteira:
Sampa – Caetano Veloso
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas
Ainda não havia para mim, Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos Mutantes
E foste um difícil começo
Afasta o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso
Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva
Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
Mais possível novo quilombo de Zumbi
E os Novos Baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa