ANTONIO BENETAZZO, PERMANÊNCIAS DO SENSÍVEL

Autoretrato quando já na clandestinidade. A identidade preservada.

Autoretrato quando já na clandestinidade. A identidade preservada.

No dia 26, feriado, fui até o Centro Cultural São Paulo para ver a exposição das obras de Antonio Benetazzo, que ali fariam até o domingo 29 de maio.
Uma exposição excepcional, e por várias razões.

Benetazzo foi assassinado em 1972, na Casa da Vovó, o sítio do Fleury usado para torturas e execuções que ultrapassavam até mesmo os limites do que acontecia nas dependências do DOPS.

Benetazzo, nascido em 1941, tinha 31 anos quando morreu. Era, ainda, um artista em formação – se é que em algum momento a formação de um artista se encerra… – envolvido na luta armada contra a ditadura.
Ainda que em formação, e com obras em quase sua totalidade executadas sobre papel, o que sobrou nas mãos de parentes e amigos mostra um pintor com um domínio sólido não apenas da técnica usada, como também com uma visão abrangente e crítica da história das artes plásticas.

A exposição foi promovida pela Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Cidadania, em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura, da qual o CCSP é um dos principais equipamentos. A SMDHC, através da Coordenação de Direito à Memória e à Verdade, parte para recuperar também a memória perdida pela repressão. Como lembra Reinaldo Cardenuto, curador da exposição, “à ditadura não bastava torturar, assassinar ou desaparecer com seus opositores, mas também difundir na imprensa farsas e encenações ou para transmitir recados de força contra aqueles que lhe ofereciam resistência. […] O regime militar não foi somente um sumidouro de pessoas, mas também um perverso sumidouro da memória” (Catálogo da exposição, p. 11).

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Tenho refletido um tanto sobre alguns aspectos da Comissão Nacional da Verdade, e à enorme ênfase que foi dada ao fenômeno da repressão: fomos vítimas da tortura, as prisões eram arbitrárias, os assassinatos se sucederam. É verdade que também foram levantadas as ações da ditadura contra o movimento indígena, as manifestações de luta antirracista e, é claro, as ações contra as greves de trabalhadores já nos seus estertores. Entretanto, considero pouca a ênfase se dá, no plano mais concreto, às razões pelas quais a violência se abateu sobre os militantes. O que fazíamos para que a ditadura tivesse essas sanhas.

A exposição do Benetazzo faz parte dessa resposta, muitas vezes também “oculta”. A repressão se abatia sobre organizações, inclusive quando estas já tinham pouca capacidade operacional para apresentar uma resistência “militar”. A razão pode ser resumida assim: é porque tínhamos capacidade de pensar um Brasil diferente daquele do “milagre”, e tudo que fazíamos contribuiu para que fosse sendo construída essa frágil retomada democrática, agora mais uma fez posta em perigo.

Sérgio Ferro – que foi professor de Benetazzo na FAU/USP, e que também esteve preso, chama atenção precisamente para isso.

“Não é o caso de desenvolver nesta nota a tese sugerida aqui: o silêncio que envolve a produção plástica de Benetazzo (e que atinge também muitos outros artistas plásticos resistentes em graus diversos contra a ditadura) faz parte de um movimento (inconsciente espero) de apagamento de nossa memória histórica para evitar acordar a culpabilidade pela passividade passada diante dos crimes nojentos dessa ditadura. […] O grande pecado da resistência foi, como se sabe, enfrentá-la – e tentar, se fosse possível, alterar a triste situação do povo brasileiro inaugurando uma situação de real e efetiva liberdade igualitária”. (Catálogo, Sérgio Ferro – p 34).

Não sou crítico de artes plásticas. Apenas procuro desenvolver a sensibilidade para entender essas correntezas do pensamento – e da luta (ou de sua negação) – que transparecem nas formas de expressão artística.

Alípio Freire, que também é artista plástico, sintetiza melhor que eu:

Benetazzo - Brasil68 - A criação dos monstros

Benetazzo – Brasil68 – A criação dos monstros

“Um jornalista que se impressionou positivamente com a obra de Benetazzo, referindo-se à série Brasil 68 (páginas 84 a 92 do catálogo), teceu paralelos entre estes trabalhos do nosso artista e aqueles de Francisco José de Goya y Lucientes, concluindo que estes últimos eram “bem mais bizarros”. Certamente o “bizarro”, naquele contexto, pretendeu significar “assustador”, “aterrorizante”.

O problema é que ao pensamento subjacente de Benetazzo subjazia a moral brechtiana desenvolvida fundamentalmente para o teatro e que ele estendia a todas as artes e fazeres – o chamado “distanciamento crítico”. Ou seja, aos artistas não cabe levar o público a emoções que redundem em catarses.

Resumindo: se é verdade que os monstros de Benetazzo não são tão “bizarros” quanto aqueles de Goya, isso se deve certamente a uma escolha do artista. Enfim, como falar do terror e do medo sem aterrorizar ou meter medo no espectador? Como, ao invés disso, levá-lo a uma reflexão sobre o terror? Esse é um dilema moral que se coloca para todo artista sério que se proponha a lidar com o tema. O efeito fácil (catártico e demagógico) das torturas insistentes, intermitentes e ultrarrealistas que lotam alguns filmes brasileiros sobre o mais recente período ditatorial deixam bem claro o que aqui pretendemos significar.

Nos seus monstros, Benetazzo foi grande e certeiro: finíssimas linhas em nanquim preto sobre o papel de seda branco”. (Catálogo – Alípio Freire, p. 43).

Afinal, todos os fascistas repetem o grito do Milán-Astray, o general franquista: “Viva la Muerte!” Quem está pela vida é sempre alvo.

Marcelo Godoy, no livro A casa da vovó: uma biografia do DOI-Codi revela que Benetazzo, depois de torturado, foi finalmente apedrejado por Fleury e comparsas no sítio clandestino, e depois levado ao Brás e jogado diante de um caminhão em velocidade para forjar a mentira do suicídio.

A última obra - inacabada

A última obra – inacabada

O Catálogo, com reproduções de boa parte das obras expostas, está disponível em algum lugar da Prefeitura. Poderia ter uma difusão mais ampla.

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5 respostas para ANTONIO BENETAZZO, PERMANÊNCIAS DO SENSÍVEL

  1. Alipio Freire disse:

    Excelente texto, Camarada Felipe.
    Excelente texto.
    Distribuí para cerca de 2 mil endereços.

    Vamos que vamos
    e vamos sempre juntos.

    Putabraço,
    Biu

  2. Lenine Bueno Monteiro disse:

    Não vi a exposição. Vi o tempo do Bene. Vi as mordaças, a briga à contraluz, a resistência e o embate desigual com a maquina de matar que existia.
    Vi e não me esqueço.
    Exposições como esta devia ser itinerantes e circular pelo país.
    Uma Caravana Rolidei dos novos tempos.
    É isso!!!!!

  3. Pingback: CENTRO CULTURAL SÃO PAULO – ESPAÇO ABERTO | Zagaia

  4. Alipio Freire disse:

    Caro Lenine,

    sua preocupação com a itinerância da Exposição do Benê, é mais que justa e adequada.

    Pelo que tenho acompanhado, essa é exatamente a idéia da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania do Município de São Paulo.

    Ela em breve será montada no CEU-Cidade Tiradentes e, no segundo semestre (talvez por volta de agosto), já está apalavrado da exposição ser montada no Rio.

    De todo modo, certamente o Zagaia deverá informar a respeito, bem como o site da SMDHC.

    Um abraço
    Alipio Freire

  5. LENINE BUENO MONTEIRO disse:

    Com as possibilidades abertas pelo avanço da cultura digital, quem sabe ter a produção do Bene digitalizada e aberta aos interessados talvez pudesse ser uma caminho.
    Aqui, por exemplo, gostaria muito de mostrar este acerto magnifico e encantado a meus alunos do curso de arquitetura.
    Além do Sensível, o Real…

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