Quando voltamos para casa – Maria José e eu – depois de assistirmos ao deprimente espetáculo da votação do golpe na Câmara dos Deputados, a mensagem chegou pelo celular: “Me liga, vó”.
Liguei eu para nossa neta Laura, que logo mais completa vinte anos e estuda artes na UnB. Laura estava em prantos com o resultado da votação. Na sexta-feira ela e colegas da UnB saíram de parangolés. Relata:
“Ontem fui com a professora Bia Medeiros e a turma da performance andando da UnB até a esplanada, fazendo performance, usando umas roupas chamadas Birutas, que parecem com os Parangolés do Oiticica…Enfim, éramos umas vinte pessoas contra o golpe. Chegamos na esplanada, que está fechada de todos os lados, e os militares nos abordaram de um jeito horrível, falaram absurdos e nos revistaram meio violentamente, mas ninguém se machucou nem nada. Depois fomos jogar vôlei no muro e eles nos deram cinco minutos para ir embora… Fiquei com medo, e estou com medo do que vai acontecer. Aqui o clima tá suuuuper tenso”.
Que responder para a neta mais velha, que passava por sua primeira batalha derrotada? Só me ocorreu aquele poema do Brecht:
Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são os imprescindíveis
Como os cemitérios estão cheios de imprescindíveis e insubstituíveis, não me considero como tal. Mas continuo na luta
Mas isso não é o suficiente para entender o que aconteceu dia 17, e como chegamos até aí. E esse é o busílis.
A frase que escrevi como título era diferente: colocava a culpa especificamente no PT. Mas isso seria fácil demais para mim.
Batalhei e militei para conseguir as assinaturas necessárias para a legalização do PT. E não foi fácil. Nos estertores da ditadura, legalizar um partido não era essa mão na roda de hoje. As exigências boladas durante a “abertura” do Geisel-Golbery e continuadas durante o desfile da cavalgadura Figueiredo permitiam sim, uma alternativa ao dilema PMDB-ARENA. Mas era difícil pra caramba.
Participei dessa batalha pela legalização do PT como militante da Ala Vermelha, a organização clandestina de luta contra a ditadura à qual estava vinculado. Morava no Rio de Janeiro e participei dos núcleos e das discussões para a organização dos primeiros diretórios. Mas nunca me interessei pela militância interna no PT. Em grande medida pela minha compreensão – que era diferente da de vários camaradas – de que o PT seria apenas um partido eleitoral, que poderia abrir caminhos para a ampliação da luta popular, mas que suas limitações se esgotavam dentro da democracia burguesa.
Não que subestimasse a importância disso. Muito pelo contrário. Mas tinha uma clara compreensão das dificuldades internas da organização de um partido eleitoral e legal: a necessidade de buscar consensos e fazer concessões para estabelecer objetivos eleitoralmente viáveis; a questão dos financiamentos de campanha – e como eram evidentes as limitações impostas na dependência exclusiva das contribuições de militantes e simpatizantes – e outras do gênero.
Tenho grande admiração e respeito pelos que se dedicam a essas tarefas. Não é fácil, e é ingenuidade pensar o contrário. Mas essa forma de militância não me interessava.
O não me interessar, porém, não me exime de responsabilidades. De algum modo sou e fui parte disso tudo, apesar de jamais ter ocupado cargos na estrutura do PT e muito menos me lançado a candidato a coisa alguma. Minha praia é outra.
Minha vida, no entanto, me obriga a reconhecer que falar do PT como se não tivesse nada a ver com os erros e acertos seria hipocrisia. Por isso, mudei a frase.
Agora, na ressaca pós votação, boa parte dos comentários diz que o Congresso é o retrato do povo brasileiro. Afinal, os eleitores é que mandaram essa turma para lá.
É verdade. Mas é só meia verdade.
A composição do Congresso, comparando com as pesquisas de opinião, reflete a correlação de forças na sociedade em um dado momento. Portanto, responde às mobilizações e motivações sociais que são dinâmicas e eventualmente muito cambiantes. Quando a ARENA era “o maior partido do Ocidente”, aquilo também refletia o “povo brasileiro”, vítima da censura, da desinformação, das “mágicas” do “milagre brasileiro” e demais mumunhas da ditadura. Quando o PMDB ganhou a maioria das cadeiras do Senado em 1974, o resultado foi o autogolpe de abril, quando o Geisel inventou os biônicos e garantiu a maioria governista.
E assim por diante.
Essa constatação, no entanto, é simplista e derrotista.
Esse Congresso é o que é, dentre outras coisas, porque o PT deixou de lado a militância junto às organizações sociais, os sindicatos e outros movimentos de luta. Trocou isso pelas alianças com os velhos partidos, descurando de aumentar a bancada de modo significativo, contando apenas com os tradicionais “puxadores de votos”. Esses se elegiam; os militantes das bases, que dariam outra cor à bancada e ao parlamento, não conseguiam entrar.
As vacilações na construção de uma reforma política que impedisse a farra de partidecos interessados apenas no tempo de televisão e nos repasses do fundo partidário também contribuíram para isso. Há quantas eleições o PT descurou de pedir explicitamente o voto na legenda?
Há um ano atrás, no dia 14 de abril, publiquei aqui um post intitulado SYRIZA, PODEMOS, O PT E OS MOVIMENTOS SOCIAIS. TALVEZ LIÇÕES. http://www.zagaia.blog.br/?p=352 Nele reproduzia trechos da entrevista, dada por Stathis Kouvelakis, membro da direção do Syriza, ao filósofo francês Alain Badiou. A entrevista foi dada antes do Alexis Tsipras se render à Angela Merkel e jogar fora a luta contra a imposições da banca internacional sobre a política grega. E essa, vista a posteriori, foi uma atitude de cujos riscos Kouvelakis chama a atenção.
Diz ele, “Necesitamos inflingir derrotas a las políticas neoliberales. Para ello, la experiencia griega enseña que movimientos y movilizaciones son la condición indispensable, el punto de partida de este proceso, pero no son suficientes en sí mismos. Hay que tomar el Estado sin dejarse tomar completamente por el Estado. Ahí está todo el problema”.
Ao ganhar eleições – na Grécia como primeiro ministro e, no Brasil, com Lula para a presidência, um partido realmente tem que tomar em conta que passa a governar para toda a nação. As tarefas de governo são mais amplas e complexas que os programas partidários. No entanto, iludir-se quanto a assumir o governo e, com isso, “deixar-se tomar completamente pelo Estado” é sempre um erro fatal. Ao que parece, o foi na Grécia, tal como Kouvelakis alertava. E certamente aconteceu no Brasil.
O PT drenou quadros da estrutura partidária e dos movimentos sociais para as tarefas de governo. Em parte – na maioria dos casos – com razão. Era necessário ter pessoas com afinidades políticas e ideológicas na direção dos órgãos de governo. E isso é totalmente diferente da ideia de “aparelhamento” que a oposição tenta passar. Todo e qualquer governo seria ingênuo de deixar que postos chave da administração fossem dirigidos por adversários.
O erro não foi exatamente esse.
Mas, ao drenar esses quadros para as tarefas da administração, o PT não apenas deixou os movimentos sociais e os sindicatos sem dirigentes experientes. Foi pior. Achou que, a partir do Estado, podia substituir a ação dessas organizações, “dando-lhes” o que reivindicavam. Ao mesmo tempo, embarcou nas negociações mais desastrosas na construção da tal “base aliada” – no primeiro governo do Lula, com gente como Roberto Jefferson! – e continuando a feudalizar a administração.
Some-se a isso a submissão ao corporativismo. O Lula se gaba de sempre nomear o “primeiro da lista” dos indicados para a procuradoria e outros cargos de Estado que apresentam listas tríplices para a nomeação. Ora, se são listas tríplices, todos os indicados são representativos, e cabe ao governo escolher quem acha melhor qualificado entre eles, e não se render ao corporativismo. O resultado aparente é uma maior liberdade de ação “republicana” desses órgãos. Só que, em vez de engavetar o que interessava ao governo, como na era FHC, o ativismo da PGR se desvela na seleção do que investigar. E temos aí o Janot como chefe do estado maior do golpe, como diz o Nassif. E nem falemos na falta de critérios para as nomeações do STF e outros tribunais. Faltam-me palavras….
Outro erro fundamental foi cometido na política de comunicação. O livro do Bernardo Kucinsky, “Cartas ao Lula”, mostra quantas vezes ele foi alertado para os furos da política de comunicação do governo.
A ilusão da “mídia técnica”, consolidada pelo Franklin Martins, e a ilusão de que os blogs e as redes sociais substituiriam a imprensa tradicional foi outro erro sério. Hoje estamos aí nos queixando do PIG e sua ação conspiradora. Ora, a própria experiência histórica já havia demonstrado cabalmente a importância da existência de um jornal independente. O que teria sido do Getúlio sem Samuel Wainer e a “Última Hora”? Juscelino teria governado também sem ela? Quantos anos o golpe foi adiado por conta dos movimentos sociais e da “Última Hora”?
Já havia tratado disso, em novembro de 2015, em um post intitulado PIG, REDES SOCIAIS E A INÉRCIA PETISTA. http://www.zagaia.blog.br/?p=564 Onde está o jornal que compete com o PIG? O problema é que houve a ilusão de que, com a “mídia técnica”, a má vontade da imprensa seria neutralizada. Isso, em uma frase simples, significa ilusão de classe. Achar que o PIG estava decadente, e que a burguesia iria dispensar tranquilamente suas poderosas ferramentas midiáticas foi outro dos erros sérios.
Com isso tudo, e para concluir, a ideia de que o parlamento é o “retrato” do povo brasileiro é simplesmente uma ideia falsa e derrotista. O parlamento é o que é TAMBÉM por conta da inércia e da incompetência em entender o papel dos movimentos sociais e da imprensa.
Retrato tem esta limitação, sempre revela um passado. Nisto o artigo é um exemplar retrato. A despeito da nossa ressaca da goleada levada com pénaltes inexistentes, faltas inventadas e juiz corrupto, precisamos de novos caminhos. Como será? Sim. Oposição, mas vamos abandonar tudo e nos recolher no “Cenáculo” esperando que Jesus venha nos bote pra fora? Já estamos em um novo momento, antes mesmo de ele começar oficialmente.
Puxa vida, não pensei que algum dia iria ler um artigo tão perfeito analisando de forma objetiva e clara o processo que nos trouxe até aqui. Muito bom o texto!
Parabéns autor.
Mais um texto generoso e super importante. Obrigada.
Caríssimos! Tenho total concordância com a análise realizada acima. Para mim, além dos argumentos apresentados, o PT formou-se também numa pratica política ligada a interesses setoriais e corporativos da classe operária em suas lutas sindicais o que fez o fortalecimento de setores e ramos do trabalho sem a solidariedade expandida entre operários e camponeses e entre setores menos importantes para o capital e setores centrais da acumulação capitalista. Deste modo, essa separação foi central na hierarquia de mando no próprio partido e com esse setor do trabalho, nasceu uma parceria entre intelectuais que não deram muita atenção aos demais grupos que necessitavam de afetos, no sentido definido por Vladimir Safatle, ou seja um bloco forte e altruísta capaz de realizar uma socialização horizontal e portanto uma transformação efetiva dos valores e dos princípios da igualdade na diversidade. Esse vácuo nas representações dos trabalhadores abriu caminho para proselitismo das mais diversas igrejas evangélicas, empresas da fé, culminando num refluxo da organização social hoje presente num parlamento que vende ilusões, indulgências, em troca de votos e de subordinação aos valores xenófobos, sexistas, racistas tão claramente exibidos no Domingo passado. Ao invés das criticas aos comandos corporativos empresariais e em defesa das liberdades e do direito às diversidades, temos uma sociedade pronta para as lutas de rua baseadas no ódio ao outro, no desprezo ao genocídio de jovens negros e pobres de nossas cidades, em apoio ao massacre aos camponeses, à destruição do meio ambiente protegidos por uma bancada relacionada ao BOI, BALA e BOTA. Uma crise que reaparece num momento em que a economia mundial enfrenta um dos reveses ligados à especulação financeira e a precariedade dos mecanismos de defesa deste tempo em que o mundo se move por guerras, drogas e a financeirização da economia. Contra isso, há muito o que fazer em todos os setores sociais, políticos e de inovação das formas produtivas anti capitalistas, tais como as que estão sendo experimentadas em diversos núcleos resistentes dos movimentos de ocupação e de trocas não monetárias. Consideram isso um atraso ou um romantismo? É assim mesmo, para mudar o mundo temos que inovar a partir de velhas idéias que foram desconsideradas em tempos pretéritos. Neste processo vigente no mundo atual, nem os humanos, nem o planeta sobreviverão a essa sanha do dinheiro que ilude e nos desvia de realizar políticas de proteção aos necessitados de direitos, de terras, das florestas, de educação e conhecimentos diversificados, de arte e especialmente de Democracia de Alta Intensidade e Contínua. Chega de golpes, tiranias, violências e ódios. Chega de genocídios! Pelo concerto dos trabalhadores de todos os setores e regiões num programa máximo de reversão do status quo neste nosso país!!!