FSG – Amazon Kindle R$ 59,00 (577 páginas)
Acabei de ler o novo romance de Jonathan Franzen, Purity. Como os anteriores, a história gira em torno da família, com personagens que entram e saem desse núcleo. Também como os anteriores, o romance se estrutura em blocos com a narrativa centrada em cada um dos personagens.
Purity – que é conhecida como Pip, e as referências ao Great Expectations do Dickens saltam de vez em quando – é uma garota, recém saída da universidade com uma dívida estudantil de US $ 130.000. Não sabe direito o que fazer. Pior. Sabe que Tyler, o sobrenome que sua mãe lhe deu, não é o verdadeiro. Não sabe quem é o pai, informação que a mãe recusa terminantemente a fornecer.
A mãe parece uma representante deslocada da “Flower Generation”, amalucada, com um subemprego como caixa de supermercado em uma dessas cidadezinhas perto de Oakland, na baía de São Francisco. Purity, também subempregada no que parece ser uma corretora de “energia verde”, mora com outros tantos defroquês em uma casa que foi propriedade de um deles – esquizofrênico – que está sendo despejado por um banco que a quer retomar por conta da hipoteca não paga.
O romance todo se organiza em torno de Purity, da mãe – e a busca do pai. Só que outro personagem importante é introduzido logo nessa primeira seção por um casal de alemães que supostamente chega lá no meio de uma “pesquisa” sobre moradores de casas ocupadas. A mulher, Annagret, convence Purity a preencher um questionário se candidatando a um estágio remunerado junto a um projeto “Sunlight”. Quem dirige é Andreas Wolf, da ex-Alemanha do Leste, que aparece no filme como uma espécie de Assange, divulgando documentos para “expô-los à luz do sol”. Como se verá adiante, há um crime sério envolvido na trama, e o crime e Wolf são catalizadores do desfecho.
As seções seguintes são narradas do ponto de vista de Andreas – filho de um alto dirigente da antiga DDR (Deutsche Demokratische Republik – a “Alemanha Oriental”) e que, por circunstâncias várias, acaba aparecendo com um dissidente. Em seguida, em uma seção cuja voz é a de Leila Helou, jornalista investigativa, sabemos que Purity está trabalhando em um site de jornalismo investigativo em Denver, dirigido por Tom Aberant (os nomes que o Franzen escolha são realmente ótimos). Leila, sua amante e jornalista investigativa premiada, investiga um caso de desvio de um míssil nuclear, a partir de informações que foram levadas até eles por Purity. Outras peças do quebra-cabeças são dadas por Purity, narrando sua experiência como estagiária no “Sunlight”, e em seguida a voz passa para Tom, narrando sua vida. Andreas volta, no capítulo mais eletrizante do livro, acrescentando mais dados ao puzzle e 0 final outra vez é narrado por Purity, de volta a Oakland e à sua mãe.
Essa estrutura complexa, com narrativas aparentemente fechadas em si mesmas – o que às vezes causa alguma confusão cronológica na cabeça do leitor – vai compondo o imenso painel, que inclui, além dos temas comuns do Franzen – família, relações familiares e como essas se inserem na sociedade dos EUA – um repúdio contundente a certas manifestações da Internet, e particularmente a isso que aparece como “jornalismo” de vazamento de documentos. O bom é que a coisa fica demonstrada na prática, com o excruciante trabalho da Leila para fazer a matéria sobre o míssil nuclear, que se transforma em belo exemplo do que é jornalismo de verdade. Isso é complementado por uma parte das elocubrações do próprio Andreas, endeusado pelo internéticos, e que no meio da sua segunda intervenção solta essa:
“A velha República [DDR] certamente havia-se superado na vigilância e nas paradas, mas a essência de seu totalitarismo havia sido mais cotidiana e sutil. Você podia cooperar com o sistema ou se opor a ele, mas algo jamais podia fazer, levasse uma vida segura e agradável ou estivesse na prisão, e era não estar em relação com ele. A resposta para cada questão, pequena ou grande, era socialismo. Se você substituir networks por socialismo, tem a Internet. Suas plataformas competitivas se uniam na ambição de definir cada termo de sua existência.” […] “O Novo Regime [a Internet, F.L.] até mesmo reciclou o palavreado da República, coletivo, colaborativo. Axiomático dos dois era que uma nova espécie de humanidade emergia. Nisso, os apparatchiks de todas as pelagens concordam. Jamais parecia incomodá-los que as elites dirigentes consistissem em exemplares da brutal e ávida velha espécie da humanidade”. […] “O objetivo da Internet e de suas tecnologias associadas era “libertar” a humanidade das tarefas – fazer coisas, aprender coisas, lembrar-se de coisas – que previamente davam significado à vida, e dessa maneira constituíam a vida. Agora parecia que a única tarefa que significava algo era a optimização dos mecanismos de busca”.
Mas não se preocupem. Esses trechos estão totalmente inseridos na história, e não se trata de pedaços simplesmente declaratórios. Fazem parte da última seção na voz de Andreas que encadeia fatos, elocubrações e o fluxo mental de sua deterioração psíquica.
O romance não deixa de ter seus problemas. Achei o final um tanto abrupto, se é que se pode dizer isso de um romance desse tamanho. Mas o importante é que em Purity “a vida anima o todo”, exatamente o contrário do que caracteriza uma literatura decadente, como definida na citação do Nietszche que achei outro dia: “Como se caracteriza a decadência na literatura? Pelo fato de nela a vida não mais animar o todo. As palavras se tornam predominantes e saltam de dentro da sentença da qual fazem parte, as próprias sentenças ultrapassam seus limites, e obscurecem o sentido de toda a página, e a página por sua vez ganha vigor à custa do todo – e o todo já não é um todo. Mas essa é a fórmula de todo estilo decadente: há sempre anarquia entre os átomos”.(Nietszche contra Wagner).
Franzen, como vários outros romancistas do norte, como Margaret Atwood, Dennis Lehanne, Don de Lillo, David Foster Wallace, o falecido Doctorow e tantos outros, mostram que o significado da literatura, e especialmente do romance, continua forte e fecundo quando os autores lançam seus olhares para o mundo e, através de narrativas bem construídas – inclusive com experimentações formais – deixam de olhar apenas para dentro de si e de seu pequeno mundo particular, como anda tanto em voga por estas plagas.
De bônus, o capítulo narrada por Leila é uma aula de jornalismo investigativo: como se corroboram informações, e como a partir de uma foto (que já é interessante), quem sabe puxar o fio da meada vai descobrindo mais coisas.
Seria ótimo se alguns dos “jornalistas investigativos” da Pindorama aprendessem. Mas, como sabemos, muitos se se qualificam como tais porque publicam vazamentos selecionados sem nenhuma apuração.
“Purity” é um ótimo romance nessa tradição, e faz jus à trajetória de seu autor.