Na última vez que estive com Cosmito, viemos juntos da Funarte até o MAM, conversando sobre o trabalho que ela fazia de levantamento do melodrama no cinema latinoamericano. Lá no MAM, Cosmito me ofereceu um de seus sempre presentes charutos cubanos. Cortamos as pontas e, para minha surpresa, ele acendeu o seu com um isqueiro. “Cosme, não é errado acender charuto com isqueiro?” – “Só se for de fluido, com gás não deixa cheiro, que é o que atrapalha a degustação”.
Não encontrei mais com ele depois desse puro.
Mas nossas memórias vinham de muito mais longe. Primeiro, da casa de seu pai, Cosme Alves Filho. Amigo do meu pai, tinha belas varandas com cadeiras de palhinha. Pensador da Amazônia e também prático, Cosme Alves Filho escrevia livros e colocava em prática seus experimentos. Sua plantação de seringueiras lá no Aleixo foi uma das primeiras a conseguir controlar as pragas que haviam destruído a Fordlandia, no Pará. Sua fábrica de beneficiamento introduziu novos métodos de processamento da matéria prima, e tantas outras coisas.
Em 1964, quando da primeira prisão do Cosmito, meu pai foi, a pedido do Dr. Cosme, ao Rio de Janeiro, como um de seus advogados. A segunda prisão é que foi a mais dura.
Mas a minha convivência se dava principalmente nas férias cariocas. Trocava praia por passar o dia no MAM. Como o projecionista passava o dia inteiro lá, Cosmito programava até três filmes para que eu visse. Foi minha formação cinematográfica. Privilegiadíssima, como podem perceber. Todos aqueles tesouros da Cinemateca iam sendo devorados. A lista seria cansativa demais…
Depois, no GEC, em Manaus – clone do que ele havia fundado no Rio, e refundado em uma de suas visitas a Manaus – continuamos recebendo os filmes que vinham do MAM. Depois, os que vinham da Cinemateca Brasileira, com a ponte que ele fez com Paulo Emílio – consolidada depois com Márcio Souza, Djalma e Guálter Batista, quando vieram estudar em São Paulo depois da invasão da Universidade de Brasília. A apreensão da cópia do L’âge d’Or, do Buñuel, pela Polícia Federal, depois de uma emocionante exibição – com um programa preparado e impresso pelo Márcio em uma impressora de pedal que tinha lá na casa dele.
Agora, o documentário do Aurélio Michilles, que entrou em cartaz, inclusive em Manaus, onde não há mais cineclubes nem cinemas de arte.
Um filme que testemunha um trabalho cultural de base, fundamental para preservação da nossa história. Não apenas da história do cinema brasileiro, mas da história. Pois, como dizia o Cosme, mesmo os filmes piores são testemunhas de um momento da vida na sociedade.
Mas é melhor deixar o Bessa falar sobre isso.
(De São Paulo) Quem foi o Cosme? No Amazonas, os jovens não sabem, mas agora podem saber. O cineasta Aurélio Michiles – o Damião – dá a resposta no documentário “Tudo por amor ao cinema”, que vi em São Paulo para onde o trabalho me levou. Confesso que fui à sala do shopping da Frei Caneca só para ver o Cosme. Vi. Mas acabei vendo muito mais. Vi o cinema e sua história. Vi a resistência à ditadura e a luta da memória contra o esquecimento. Vi Manaus, o Amazonas, o Brasil. Vi poesia, humor, lirismo. Vi dois amazonenses amantes do cinema: o Cosme e o Damião que narra, bordando de amor cada cena do filme.
Ele, Cosme Alves Netto (1937-1996) está lá na pintura feita por seu “gêmeo”. De corpo e alma. De frente e de perfil. Inteiro. Charmoso. Sua passagem pelo planeta é contada desde que nasceu em Manaus até a morte no Rio antes de completar 60 anos, passando por sua atuação em cineclubes, no Grupo de Estudos Cinematográficos da União Metropolitana de Estudantes, nos cursos de Comunicação da PUC e de Filosofia da FNFi, na programação alternativa do Cine Paissandu, na direção da Cinemateca do Museu de Arte Moderna. Suas andanças pelo mundo como “embaixador do cinema brasileiro”, a militância na JUC e na Ação Popular, as prisões que sofreu, as mulheres de sua vida, nada escapou ao olhar atento e amoroso do Damião.
Aurélio Michiles, que já nos havia dado “O Cineasta da Selva” (1997) premiado em festivais internacionais, correu atrás do seu personagem. Consultou arquivos pessoais e familiares. Entrevistou dezenas de cineastas, atores, jornalistas, críticos de cinema, escritores, gente que teve o privilégio de conviver com Cosme. Filmou os lugares por onde ele passou: Manaus, Rio, São Paulo, Salvador, Brasília, Mossoró, Lisboa e Havana. Construiu uma narrativa, intercalando os depoimentos com cenas de 70 filmes, entre os quais “Cantando na Chuva”, o seu preferido. O filme guia dessa forma o olhar do espectador respeitando a inteligência e a sensibilidade de cada um.
No depoimento, o escritor Márcio Souza, seu amigo, lembra que todo fim de ano recebia Cosme em sua casa, quando assistiam juntos “Singing in the rain”.
– Até hoje, na passagem de ano, eu passo o musical em homenagem a ele. Coloco sua cadeira ao meu lado e assistimos juntos. Coincidentemente Cosme morreu no mesmo dia e na mesma hora que Gene Kelly – lembra Márcio.
A vida de Cosme foi toda ela dedicada a lutar contra o esquecimento. Ele salvou da morte obras cinematográficas que guardou clandestinamente em sua casa e na Cinemateca, registradas com nome camuflado para evitar que fossem destruídas pela polícia e pela censura. Foi o que aconteceu com “Cabra marcado para morrer” de Eduardo Coutinho – um dos entrevistados – que gravou as primeiras sequências em 1960, salvas por Cosme na Cinemateca do MAM onde ficou registrado com o poético e sugestivo título de “Rosa do Campo”. Desta forma, passou a perna na ditadura militar.
O filme conta as duas vezes em que Cosme Alves Netto foi preso pelos órgãos de repressão da ditadura militar. A primeira foi logo depois do Golpe de 64, por Cosme ter exibido na rebelião dos sargentos e marinheiros no Rio de Janeiro o Encouraçado Potemkin (1925) de Serguei Eisenstein, baseado num fato histórico ocorrido em 1905, na Rússia e na Ucrânia.
– Ele foi preso com a lata do Encouraçado, só que teve o cuidado de substituir o conteúdo por outro. Quando os militares o prenderam, atearam fogo numa película qualquer na frente do Cosme, achando que estavam destruindo o filme russo – conta Michiles.
– Cosme sempre lutou em favor da liberdade de expressão, dentro da Cinemateca ele não admitia a censura – diz o cineasta Luiz Rosemberg Filho, para quem “a função que ele exerceu na história do cinema brasileiro foi criar na Cinemateca um espaço de resistência em plena ditadura militar, quando se enfrentava proibição generalizada. Ele exibia filmes proibidos em sessões clandestinas em cineclubes e nas universidades”.
Sua segunda prisão pelo CENIMAR, na Marinha, é contada desde quando desistiu de fugir do Brasil, retornando de São Paulo para o Rio. Foi preso em seu apartamento. Levado para uma unidade militar, um oficial lhe ordenou que aguardasse sentado num sofá. Lá ficou esperando o momento de ser fichado e fotografado e de inventariar o que trazia: relógio, algum dinheiro, etc. Foi aí que se deu conta de que trazia no bolso sua agenda de endereços, cuja captura pelos gorilas levaria à prisão alguns companheiros e amigos. Passou a mão por baixo do sofá e constatou que lá havia um pequeno corte no forro. Jogou com a sorte. Enfiou a agenda lá naquele buraco.
Cosme foi interrogado, espancado, torturado, mas não entregou ninguém. Seis meses depois, foi liberado. Saiu da prisão para a mesma sala por onde havia entrado. Ordenaram para que esperasse sentado no mesmo sofá a devolução de seus objetos pessoais. Ele se lembrou da agenda, enfiou a mão, estava lá. Retirou-a e colocou-a no bolso. Esse é o Cosme que Michiles nos mostra, trazendo-nos depoimentos de Isa Guerra com quem ia se casar antes de ser preso, Glória Barbosa – sua companheira na hora da morte e a filha dos dois.
A história de Cosme é narrada com depoimentos, entre outros, de Ana Arruda Callado, Eduardo Coutinho, Nelson Pereira dos Santos, Jurandy Noronha, Vladimir Carvalho, Walter Carvalho, Oswaldo Caldeira, Silvio Tendler, Orlando Senna, Andrea Tonacci, Geraldo Moraes, José Carlos Avellar, Luiz Rosemberg, Zelito Viana, Márcio Souza, Joaquim Marinho.
“Tudo por amor ao cinema” já está passando em Manaus no Cinépolis do shopping Ponta Negra, com sessão diária às 21h50. Traz um dos pedaços nobres da história do Brasil, com a contribuição dada pelo Amazonas. Torço para que algum jovem amazonense, amante do cinema, possa curti-lo, com a esperança de que dentro de trinta ou quarenta anos faça um filme sobre Damião, que recebeu a tocha de Cosme e agora a está passando adiante. A luta continua. Continuons le combat. Ce n´est qu´un début.
P.S. – Outras crônicas onde Cosme aparece:
1. Revivendo Cosme (2006)
http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=163
2. Berinho e a transfusão de sangue:
http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=164
3.Cosme, cheiro de cinema (2014)
http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=1078