“Adeus, Camaradas” – Nostalgia, história e contexto em documentário sobre a dissolução da URSS

“Sonhei que a democracia era compatível com nosso ideal, que as pessoas optariam pelo socialismo se tivessem escolha. Mas não foi assim. Para mim, isso foi uma tragédia tão grande, que parei de pensar nisso. Mesmo que depois alguns se arrependessem, em 1991 as pessoas rejeitaram nosso socialismo. Fazendo isso, se puseram contra sua educação, seus hábitos, seus valores, suas lembranças, tudo que gostavam. Permaneciam soviéticos e socialistas na alma, mas não suportavam mais que lhes mentissem e enganassem. O ponto de partida de nossa aventura foi a fé em um ideal de fraternidade e justiça. No caminho, cada um de nós evoluiu. Quanto a mim, a coisa mais importante e dolorosa que aprendi, é que não se pode impor um ideal, por mais nobre que seja.

Por quê?

Porque afinal nenhum ideal pode prevalecer sobre a liberdade”.

Andrei Nekrasov, cineasta (russo? Ex-soviético? Franco-soviético?) no final de seu documentário Adieu, Camarades!, produzido pelo canal europeu Arte e lançado no Brasil pela Versátil.

adeus, camaradas O documentário fez-me lembrar muito dos anos de militância, entre as décadas de 60 e 80, por isso mesmo provocou uma certa estranheza, sobre a qual refleti depois.

A chave, realmente, é que Nekrasov é russo, e estrutura o documentário a partir de sua experiência, de sua vida como russo na União Soviética. Para ele, inculcado desde a infância, sua vida era a vida no socialismo. Socialismo, ponto parágrafo.

Quanto isso era distante de nós, que militávamos contra a ditadura e em busca da construção de uma sociedade socialista. Para a grande maioria dentre nós, o que havia na União Soviética – e no Leste europeu – era uma “experiência” de socialismo real. E muito problemática.

Havíamos passado, em 1964, pelo rotundo fracasso do PCB, cujas táticas e estratégia não conseguiram dar um mínimo de resposta à ação dos golpistas. O “esquema militar” do general Assis Brasil – chefe do Gabinete Militar do Jango – era nada mais que vento quente, arroto ilusório. E mesmo os que se colocavam à esquerda, como o PCdoB e as Ligas Camponesas do Julião, estavam no fundo atrelados às ilusões do PCB e não houve nenhuma resistência efetiva ao golpe.

Naquela época também se cristalizava a chamada ruptura sino-soviética, e Cuba já era o que era: por um lado tentando apoiar guerrilhas e guerras de libertação nacional na África e na América Latina (via Che), e ao mesmo tempo desesperada para escapar do sufoco do bloqueio, ora com os mirabolantes planos da safra de dez milhões de toneladas, ora com a busca de qualquer apoio que pintasse no horizonte para não cair totalmente na dependência da União Soviética. A experiência da crise dos mísseis já havia ensinado os cubanos sobre os alcances e os interesses do apoio soviético à ilha. E a guerra do Vietnã – com as guerrilhas paralelas no Camboja e no Laos – acrescentavam outros ingredientes à salada.

Todo o processo descrito no documentário de Nekrasov era visto por aqui dentro desse nosso contexto. Foi vivido por nós dentro desse contexto. Salvo para os militantes do partidão, a União Soviética não era “a” experiência do socialismo. Era o dito “socialismo real”, problemático e, se não destinado ao fracasso, certamente muito longe do imaginado. Ainda que a Revolução de Outubro fosse unanimemente admirada por todos, a experiência do stalinismo já era evidente, embora houvesse também rejeição ao discurso anticomunista das bailarinas que fugiam e – mesmo com espanto – às posições de um Soljenítsin.

Em 1983, na Marco Zero, publicamos A Oposição no “Socialismo Real” – União Soviética, Hungria, Tcheco-Eslováquia, Polônia: 1953-1980, do Fernando Claudín (traduzido por mim). Claudín, ex-membro do Comitê Central do PC Espanhol, havia sido expulso antes que prevalecessem as posições do “eurocomunismo” que, no final, levaram Santiago Carrillo a aceitar o Pacto de Moncloa. É uma análise panorâmica de fatos que estão vistos no documentário de Nekrasov desde a perspectiva de um jovem russo. O livro do Claudín expressava o que muitos de esquerda pensavam, e bem antes da “perestroika” do Gorbachev:

O “socialismo” da Europa do Leste não era fruto de revoluções, e sim da imposição do Exército Vermelho, em primeiro lugar. Depois, o conceito de “democracia popular”, uma frente de transição – aceitável diante das condições do final da II Guerra Mundial” – fora liquidado, e os respectivos partidos comunistas alçados ao poder sem os contrastes e alianças que eram supostos nessas democracias populares. Muitos dos aspectos econômicos do Pacto de Varsóvia tornavam aqueles países, de fato, colônias sujeitas a uma divisão de trabalho na produção de mercadorias.

O pior, entretanto, era o que acontecia na própria União Soviética. Mesmo com a compreensão dos efeitos do bloqueio dos primeiros anos depois da Revolução de Outubro e da guerra civil, os métodos stalinistas se revelavam como completa negação do que fora Outubro. Ainda assim, um livro como “Être Communiste Sous Estaline”, um texto recolhido por Nicolas Werth, escrito por um militante perdido nas imensidões da Ásia, mostrava as dificuldades, contradições e problemas da construção da sociedade soviética em seus primeiros anos, e como tudo simplesmente era extremamente difícil e penoso (Gallimard, 1981).

Ainda assim, o esforço soviético na derrota do nazismo, os avanços no campo técnico-científico e tantas outras façanhas (reais ou aparentes) da União Soviética se contrapunham,  deixando uma compreensão contraditória sobre tudo aquilo, sem falar que o conceito de luta de classes, transferido ao panorama internacional, continuava sendo fortíssimo entre quem tinha formação marxista.

A perestroika e a glasnost, mais tarde, simplesmente deixaram claras as contradições, e viu-se que aquilo realmente não era o que se esperara no princípio.

O documentário, divido em seis capítulos, se estrutura como um diálogo entre Nekrasov e sua filha, tida com a esposa francesa, e que é historiadora. Tatiana dialoga com o pai (sempre em off), comentando, às vezes de modo ácido, o desenrolar dos acontecimentos.

O documentário foi produzido pelo canal europeu ARTE, e os detalhes da produção são muito interessantes. As entrevistas são feitas nos idiomas originais, legendadas, e incluem personagens de quase todos os países da Europa do Leste – mas não, significativamente, de todas as “Repúblicas Soviéticas”. Ou seja, o filme se foca na área do Pacto de Varsóvia mais que dentro da própria URSS.

Os entrevistados representam um corte amplo de personagens direta ou indiretamente envolvidos nos acontecimentos, além de cidadãos comuns, militantes de direitos humanos, ex-guardas de fronteira, ex-soldados. Também são recolhidos excertos de noticiários e muitas gravações feitas clandestinamente na época, inclusive as que mostram manifestações e movimentações de tropas. Gravações de espetáculos musicais – e algumas entrevistas com cantores dissidentes, completam o panorama.

Os “grandes” personagens não foram entrevistados para o filme, embora apareçam em gravações da época: Brejnev, Andropov, Gorbachev, Yeltsin, Ceausescu, Václav Havel, Jaruselsky, Honeck e outros do mesmo naipe. Mas são entrevistados alguns de seus auxiliares próximos ou membros das equipes, como o antigo chefe de segurança pessoal de Gorbachev, General da KGB, que termina manifestando enorme desprezo pelas atitudes políticas e pessoais do Gorby.

Um aspecto muito interessante do projeto é o do material adicional produzido pelo Centre National de Documentation Pédagogique (CNDP) francês, que colaborou no desenvolvimento de uma plataforma interativa na Internet, Adieu Camarades!em associação com o canal ARTE. O objetivo do CNDP é disponibilizar aos professores conteúdos pedagógicos de qualidade e gratuitos, disponíveis para uso em sala de aula e nas residências.

A plataforma interativa se organiza em seis idiomas (francês, alemão, inglês, romeno, norueguês e checo), e toma como pretexto uma série de 26 cartões postais enviados desde vários países da Europa do Leste. Seus destinatários são personagens que viveram os momentos narrados no documentário, comentam os postais em filmetes e remetem a outros materiais audiovisuais. A mesma abordagem pode ser vista a partir de mapas. Muito interessante. E um bom exemplo de tipo de material que poderia ser produzido pelo MEC/MinC e televisões educativas e públicas do país.

Adeus, Camaradas pode, portanto, ser visto simplesmente como um documentário, mas nas mãos de professores inteligentes e preparados, também pode ser um ótimo material de ensino de história.

A Versátil tem divulgado aqui documentários importantes, como este, e como o baseado na obra do Darcy Ribeiro, “O Povo Brasileiro”, além do recente “No Paiz das Amazonas”, recuperação de filme feito no Amazonas nos anos vinte por Silvino Santos, um dos precursores do cinema brasileiro. Mais recentemente lançou “Sartre no Cinema”, além de uma seleção de filmes que vai muito além do que as grandes distribuidoras mandam para cá.

 

 

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2 respostas para “Adeus, Camaradas” – Nostalgia, história e contexto em documentário sobre a dissolução da URSS

  1. Aurélio disse:

    Ironia muito curiosa desta vida cheia de ironias, o Sr Nekrasov foi amigo pessoal (e documentarista da vida) de um ex- agente soviético, depois delator-premiado
    (“colaborador” do M16 inglês para assuntos da finada). Também ex-funcionário do corinthiano-desde-menininho Boris Berezovsky, acabou morto num dos tantos episódios finíssimos da Nova Era pós Gorby: envenenado por plutônio. Ao que tudo indica, por ex-colegas de agência. Qual delas, não é dito. )

    Detalhe: na distribuidora o DVD esgotou, mas uma Senhora local, tenaz militante anti-comunista, disponibilizou tudo em tube, as 6 partes legendadas.

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