“A gente não quer só comida
A gente quer comida
Diversão e arte” – Titãs
Até que andei emagrecendo recentemente (as famosas recomendações médicas), mas adoro comer. E cozinhar – aos domingos, e só aos domingos.
É o momento clássico de congregação familiar. Claro que não obrigamos os filhos a vir (e, como a Galiana mora no Rio, seria difícil…), mas o José Gabriel, com a Sabrina e os netos geralmente vêm, e é uma curtição.
Hoje, como estão viajando, cozinho só para minha namorada de sempre, Maria José. Algo simplesinho: picanha de cordeiro e uma massa com pesto; sobremesa, sorvete e goiabada com requeijão.
Mas gosto de preparar a comida amazonense, e com receitas tradicionais, as que aprendi vendo como se fazia na casa de meus pais, em Manaus: pirarucu fresco, empanado, guisado, com ou sem leite de coco; caldeiradas, de tambaqui, tucunaré; pirarucu seco, o “pirarucu do céu”. Esses ingredientes são relativamente fáceis de conseguir. Aqui, já importam pirarucu e tambaqui congelados, se bem que, na verdade, o tambaqui que chega, de criadouro, nem de perto alcança o tamanho dos que se encontram nos mercados amazonenses, é só o que chamamos de “um ruelo”, e a famosa costela é ridiculamente pequena. Mas quebra o galho da saudade. O pirarucu seco de vez em quando consigo, mandado pelas minhas irmãs que ainda moram em Manaus (e que levam para Brasília, onde mora minha mãe, e de lá é devidamente socializado). Farinha, principalmente a seca do Uarini, também só devidamente contrabandeada na mala de alguém. Dona América, mãe do Márcio Souza, sempre se lembra de colocar um ou dois pacotes na mala dele quando ele vem para S. Paulo… Pimenta murupi, a rainha absoluta das pimentas, pois é cheirosa e picante ao mesmo tempo, só assim também.
Mais difíceis são os outros peixes. Um jaraqui frito, uma sardinha (de água doce) na brasa e outros mais, só na memória. Pato no tucupi e tacacá, dificílimo, pela falta do tucupi e do jambu. Dizem a Nina Horta e a Neide Rigo que encontram jambu por aqui. Nunca achei.
Não gosto – até por falta de experiência, reconheço – dessas “recriações” feitas com os ingredientes. A memória pede a tradição. Mas não me importa que gente por aí ande recriando os sabores amazônicos.
Já brinquei muito com o Carlos Lazarini, meu cunhado e pesquisador da Embrapa, protestando pela pesquisa não ter estabilizado ainda a semente do murupi. Explico: como todas as capsicum, a semente do murupi é muito instável, e as mutações ora produzem uma pimenta sem cheiro, mas ardida, ora o inverso, cheirosa que não arde, ou uma que parece um pimentão, que nem arde nem cheira. Garanto a vocês: um molho de pimenta que conseguisse preservar o ardor e o cheiro da murupi desbancaria qualquer outro molho do planeta. E a Embrapa já fez isso com o pimentão, outro capsicum: quem planta sabe que pimentão vai sair: verde, amarelo ou vermelho.
Fica, mais uma vez, o protesto e o apelo: Embrapa da Amazônia, por favor estabilizem a semente da pimenta murupi, para a delícia do mundo.
No terreno das sobremesas, o clássico era a torta de banana pacovão, frita em fatias, coberta de clara e creme de ovos e depois assada. A banana tem que estar bem madurinha. Meio verdosa, só frita para substituir batatinhas. E o abricó, deliciosíssimo, que de vez em quando frutificava no quintal da casa da minha avó e madrinha, Brigitta. Além das mangas, essa bendita importação da Índia que cresce por todo o Brasil. No capítulo das frutas, principalmente em sucos ou sorvete, lembro do doce de cupuaçu. Esse, aliás, dá para fazer aqui, embora a polpa encontrada nos supermercados não seja nem cheirosa nem tão suculenta quanto a tirada da fruta, cultivada no Espírito Santo ou na Bahia. Mas é bom lembrar também suco de buriti, fruta bem espalhada, mas que nunca vi em suco fora do Amazonas, e dos jambos, vermelho e amarelo.
Outras duas frutas deliciosas, que não são de sobremesa, mas que fazem parte do cardápio dos cafés da manhã e dos lanches: pupunha e tucumã. A pupunha, por aqui, só é conhecida como palmito. Os sulistas nem desconfiam do que perdem, ao não conhecer pupunha cozida. E o tucumã, que agora em Manaus também faz parte de uma inovação culinária bem bolada, o “xis caboco”, sanduíche de queijo coalho com lascas de tucumã. Porretíssimo.
Mas, sobre a observação inicial de que só cozinho no domingo, valem algumas reflexões.
Esses restos de patriarcalismo escravagista que ainda vigoram na nossa sociedade se manifesta – como sabemos muito bem – na ainda extensa presença das empregadas domésticas, inclusive das cozinheiras.
Ora, é uma irracionalidade total ter uma pessoa para cozinhar para ela e apenas para mais duas ou três outras. O sentido familiar e comunitário da refeição é completamente perdido. E, quando é a mãe que não trabalha fora (ou que tem que fazer isso quando volta do trabalho) que se escraviza para preparar almoço e jantar para marido e filhos, isso não é mais que a degradação da situação feminina. A empregada doméstica pelo menos recebe um salário (claro, sabemos de situações degradantes, que felizmente diminuem, mas ainda estão longe de acabar), mas a famosa “mãe de família” é uma escrava, não remunerada pelo trabalho de fazer comida. E, lembremos, essa situação é intimamente ligada à desqualificação da posição da mulher.
Enfim, na sociedade moderna, a divisão social do trabalho conduz cada vez mais, e espero que inexoravelmente, à alimentação cotidiana ser produzida de modo especializado, como trabalho qualificado.
E isso, com certeza, irá valorizar ainda mais os encontros familiares, semanais ou ocasionais.
Para abrir o apetite de vocês, duas receitas, que o Zagaia é eclético. A do Pirarucu do céu foi tirada do livro “Doces Lembranças”, da D. Chloé Loureiro, que editamos na defunta Marco Zero (atualmente encontrável apenas nos bons sebos). E o doce de cupuaçu, que via a Dária, cozinheira lá da casa dos meus pais em Manaus, fazendo e dizendo que aquilo era fácil demais de fazer (a especialidade dela era a torta de banana).
PIRARUCU DO CÉU
(Para meu primo Paulo Lindoso, que nem é amazonense e vive com saudade da versão que seu pai, tio Bernardes, fazia)
1 kg de pirarucu seco
1 coco grande ralado e espremido de onde se tira um punhado para misturar na farinha (dá para substituir pelo leite de coco e coco ralado industrial, que o progresso não faz mal – FL)
½ kg de tomates
250 gramas de pimentão
1 kg de farinha do Arini (ou Uarini, como queiram dizer)
1 maço de cheiro verde e cebolinha
3 cebolas
1 colher de chá de sal
½ xícara de água quente
Coloque o pirarucu de molho em bastante água, com um punhado de farinha seca, pelo menos durante três horas. Depois lave e ponha para ferver em água, para tirar o sal.
Asse na brasa ou no forno, regando-o com um pouco de óleo ou azeite. Deixe esfriar e desfie em lascas.
Ponha a farinha para torrar e deixe esfriar. Molhe a farinha com o leite de coco, misturando o coco ralado, até ficar uma farofa úmida e solta. Reserve. Refogue no azeite as cebolas, tomate, pimentão e cheiro verde, cortados miúdos. Quando estiver tudo bem refogado, junte a águas quente (tem quem acrescente um pouco de ketchup, eu não – FL). Deixe ferver mais um pouco até engrossar.
Arrumação no prato
Forre um pirex com um pouco da farofa de coco, vá alternando lascas de pirarucu, farofa e refogado, terminando com o refogado. Enfeite com ovos cozidos e azeitonas. Leve ao forno para esquentar bem.
DOCE DE CUPUAÇU
Um ou dois pacotes de polpa de cupuaçu, descongelados, e o mesmo peso em açúcar.
Misture em uma panela. Coloque em fogo baixo, mexendo sempre, até dar ponto. Cuidado que, nas panelas inox e alumínio, o ponto continua engrossando depois do fogo desligado.
Deixe esfriar e coma. Os amazonenses comem com farinha do Uarini misturada.
Gostei desse almoço “simples” que você fez para a minha mãe…pode anotar no caderninho de “comidas para fazer quando a Gali tiver em SP”!!
Também gostei do almoço. Estou com saudades!
amo vocês.
Laura, outro dia deixei uma mensagem no seu cel. Não ouviu?
bjs
No día qué fieras o doce de cupuaçu convida a visión ha, do 6 C nao confundir com B…rsrsrs
Saiu en catalãn
Tá variando, Malu?
Mas deu para entender….né, não.?