Tentei ler, já há alguns anos, o romance “Montanha da Alma”, do chinês Gao Xingjian, que foi o primeiro daquele país a ganhar o Nobel de literatura. Não consegui. Romance metafísico, chato demais. Não consegui passar das primeiras cinquenta páginas. E sou desses que dificilmente larga um romance, ou sai do cinema diante de um filme ruim. É preciso ser superlativamente chato ou ruim para me fazer desistir.
Gao Xingjian foi profusamente louvado pela imprensa ocidental em 2000, quando ganhou o Prêmio. Já os chineses – inclusive o sindicato dos autores – acusou os suecos de fazer manobra anti-chinesa, etc. etc.
Em 2012, outro chinês abiscoita o diploma do Nobel, que nenhum escritor brasileiro conseguiu. Mo Yan foi o vencedor. Dessa vez, ao contrário de Gao Xingjian, Mo Yan não apenas vivia na China, como era estimado pelo regime e elogiou repetidas vezes o Partido Comunista. Pronto, foi a senha para que acusassem os suecos, desta vez, de ceder à pressão do governo de Beijing e premiar Mo Yan como “compensação” por haver premiado Gao Xingjian. As críticas recrudesceram quando se lembrou que Liu Xiaobo, que recebeu em 2010 o Nobel da Paz, está preso. Dissidentes famosos, como o pintor-escultor Ai Weiwei, lamentaram essa premiação.
Eu fiquei lá de pé atrás com esse tiroteio, pois havia visto o “Sorgo Vermelho” de Zhang Yimou, baseado em um dos romances de Mo Yan, e nada condescendente com a situação dos camponeses chineses. Outros filmes já foram feitos a partir dos livros do escritor, inclusive comédias.
Agora, terminei de ler “The Garlic Ballads” – “As Baladas do Alho”, de Mo Yan.
O livro conta a história de um momento – já na época do “prosperai!”, no qual as autoridades de uma comunidade, sintomaticamente chamada de Paraíso, convencem os camponeses a plantar extensivamente alho, prometendo a compra da colheita a preços vantajosos. Todo mundo planta alho, e quando chega a colheita, o governo municipal deixa de comprar a maior parte da produção, que apodrece. Havia alho em demasia.
As relações de parentesco jogam um papel importante no livro. Gao Ma, um dos camponeses, ex-soldado, apaixona-se por Fang Jinju, filha de seus vizinhos, e é correspondido. Só que Jinju havia sido prometida em casamento, a um parente de um dos dirigentes do Partido e autoridade do município, em uma intrincada troca de favores para conseguir uma esposa para seu irmão mais velho, que era semi-aleijado. Casamentos contratados são legalmente proibidos, mas a tradição ainda é amplamente aplicada, e os pais negociam os casamentos de filhas e filhos.
Com a crise de superprodução, a população se revolta e depreda a sede do governo municipal e ainda dá umas porradas em alguns funcionários. Um dos cabeças espontâneos do assalto é Gao Ma, que é preso. Só que, junto com ele, vai presa a mãe de Jinju (que o odiava), e Gao Yang, outro camponês. A mãe de Jinju, a “Quarta Tia”, participa do tumulto por conta da raiva por seu marido haver sido morto em um acidente com o carro, dirigido por um motorista bêbado, que estava a serviço do Secretário Wang, o chefão local do PC. Gao Yang foi testemunha do acidente, e paga por isso.
Jinju, grávida, se suicida em uma cena de puro surrealismo, dialogando com o feto sobre as dificuldades da vida que ele não teria, e ela o “convence” a não nascer. O julgamento de todos é uma farsa, apesar de um dos advogados, professor de marxismo-leninismo, defendê-los e acusar os dirigentes locais de sanguessugas. Todos vão para campos de reeducação.
A Quarta-Tia é solta alguns meses depois, com a pena comutada, por doença e velhice. Mas, quando chega em casa, depara-se com o complô dos ambiciosos filhos (que dividiram tudo o que a família tinha), de casar o “fantasma” de Jinju com o “fantasma” do filho do chefão. E também se suicida diante da ganância dos dois filhos traficantes dos restos mortais da irmã. Gao Ma, que sabe da notícia no campo de reeducação, levada pela esposa de Gao Yang, sabe que logo seria solto, mas tenta fugir e é fuzilado na tentativa.
Os fantasmas e os mortos (ou os prestes a morrer, como o feto de Jinju) aparecem em vários momentos do romance, dando o toque de literatura fantástica que às vezes é ligado a Mo Yan. O suicídio da Quarta-Tia não é provocado pelo casamento em si, mas pela indignidade de entregar Jinju a outro que não Gao Ma, e pela ganância inescrupulosa dos filhos, que odiavam a irmã e não hesitam em vender seus restos mortais. A Quarta-Tia já havia reconhecido que “Jinju é de Gao Ma” ainda na prisão. Mas a verdade é que o mundo dos mortos é uma presença constante no cotidiano dos chineses. Veja-se, por exemplo, a notícia do New York Times do dia 12 de março, que relata as discussões dentro do PC Chinês sobre a reencarnação ou não do Dalai Lama.
A prosa de Mo Yan me lembrou muito a de Lu Xun, escritor da década de trinta, membro do PC e prestigiadíssimo por Mao Zedong. Lu Xun era essencialmente contista. A coletânea “Antigos Relatos Contados Novamente” é reveladora da brutalidade do campo chinês antes da revolução, e seu estilo também tinha toques surrealistas. O romance “A Verdadeira História de AQ” segue a mesma linha. Li esses livros em espanhol, há décadas. Existem traduções para o inglês em e-book.
Mo Yan só tem, por enquanto, um de seus livros publicados no Brasil, “Mudança”, editado pela Cosac Naify. Não é um de seus livros mais significativos. A Companhia das Letras promete a publicação de “Rãs” para setembro. Esse é mais importante, lidando com a política do filho único e abortos forçados. Aguardemos.
Bom, esse é o Mo Yan, que a imprensa ocidental acusa de subserviente ao PC Chinês. Pode ser prestigiado pelos círculos oficiais, e seus livros, como disse, já serviram de base para vários filmes.
Essencialmente, porém, Mo Yan é um grande romancista. “The Garlic Ballads” (o título vem da balada cantada por Zhang Kou, menestrel cego que me evocou os do nordeste, que relata os eventos do ponto de vista dos camponeses, e termina assassinado, com a boca cheia de lama, apesar de ter sido absolvido no julgamento) é obra de um estilista, grande contador de histórias e que, se é comprometido com algo ou alguém coisa na China, é com a população que está fora do milagre. Lerei outros, mais tarde.
Já li alguns críticos (dos EUA) ressaltarem a vitalidade da literatura chinesa contemporânea. Sem falar na imensidão dos números, e das novas formas de escrever usando a Internet, li alguns romances chineses modernos e contemporâneos muito interessantes.
Mao Dun (1896-1981) é considerado um dos grandes nomes da literatura chinesa moderna. Li, em castelhano, seu romance “Medianoche” (子夜), lá pelos anos 1970. É um romance realista que explora o mundo comercial de Shangai nos anos 1930, com um retrato simpático do nascente movimento operário. O romance, entretanto, é focado nas vicissitudes da burguesia industrial que se bate contra a burocracia, a corrupção, a especulação financeira e a concorrência internacional. Parece novidade? A Marco Zero, na época, tinha uma opção para publicar, mas tivemos que desistir pelas dificuldades da empreitada.
Mao Dun foi, depois da Revolução, Ministro da Cultura de Mao Zedong, saindo do cargo em 1964, no meio de turbulências políticas. No entanto, foi prestigiado até o final da vida e dá nome a um importante prêmio literário chinês.
Um escritor bem interessante é Qiu Xialong, autor de uma série de romances policiais protagonizados pelo Inspetor Chen, da polícia de Shangai. O Inspetor Chen mora em um antigo edifício, com cozinha coletiva e privacidade extremamente reduzida, e batalha para conseguir um apartamento em um dos novos prédios (acaba conseguindo), no meio da burocracia e das avaliações feitas aos membros do PC. Mas os romances mostram, como todo bom romance policial, o cotidiano e os problemas da vida dos cidadãos comuns e também as espinhosas tarefas de desvendar crimes politicamente carregados que passam pelas mãos do inspetor. “Visa pour Shangai”, (em francês) por exemplo, envolve até a cooperação com o FBI para resolver o caso do desaparecimento da mulher de um atravessador. “Mort d’une héroïne rouge” desvenda o caso de uma trabalhadora modelo, heroína do socialismo, que é assassinada, e a investigação acaba revelando um lado nada heroico. Já em “Encres de Chine” o Inspetor Chen vai atrás do assassino de uma militante feroz na época da Revolução Cultural, que se tornou dissidente, e cujo assassinato se reveste de enormes complicações políticas. Em “Red Mandarin Dress” o Inspetor Chen enfrenta um serial killer, em outros crimes que também envolvem o período da Revolução Cultural e corrupção. Finalmente, “Disappearing Shanghai” é uma coleção de fotos tiradas por Qiu Xialong, com ensaio dele, mostrando as transformações de sua cidade. Esse só em papel. Qiu também mantem um blog.
Não há nada em português de Qiu Xiaolong.
Outro escritor chinês contemporâneo, mas esse está traduzido ao português, é Yu Hua, um dentista que virou autor. Li “Brothers”, um romance impressionante pela crueza e violência, descrevendo a trajetória de dois irmãos, cujo pai é assassinado durante a Revolução Cultural e que tem que se virar. Um deles, o mais esperto, acaba multimilionário, começando como catador de lixo, importador de ternos japoneses de segunda mão. O segundo, tímido e desajeitado, casa entretanto com a mulher que é o objeto de desejo dos dois. Acaba virando personagem em um circo freak, com seios crescidos a base de hormônios, a mulher vira dona de bordel, e por aí vai. É a visão mais cruel do “Prosperai!”, o lema do Deng Xiao Ping. “Irmãos” foi publicado aqui pela Companhia das Letras (não disponível em e-book), assim como “Chronicle of a Blood Merchant” (“Crônica de um Vendedor de Sangue”) e “Viver”. A “Crônica de um vendedor de sangue” (que está na minha lista, no Kindle, em inglês), literalmente trata do comércio de sangue. Dá para imaginar o tom. “Viver” foi filmado por Zhang Ymou e não circulou na China, o que provocou uma repercussão enorme.
Muita gente se esquece que a tradição literária chinesa é antiga. Sempre alegoricamente política, além de sensual. “O Romance dos Três Reinos”, da autoria de Luo Guanzhong, o “À Beira d´Água”, da autoria de Shi Naian, o “A Peregrinação ao Oeste”, de Wu Cheng´en, e o “Sonho do Pavilhão Vermelho”, da autoria de Cao Xueqin, são clássicos com vários séculos de existência, estudados continuadamente (Mao Zedong era especialmente interessado nessas obras, por exemplo) e fazem parte de uma tradição literária que continua viva e vibrante. A metafísica de Gao Xingjian é que talvez destoe dessa linha de romances com muita ação. Certamente não Mo Yan.