Roberto Gervits, que é cineasta (dos bons), publicou no dia 21/2, no Caderno 2 do Estadão, uma crítica a Whiplash, o filme de Damien Chazelle, que concorre ao Oscar por conta da interpretação de J. K. Simmons do professor sádico de uma academia de música, moldada na Julliard. Fletcher, o personagem de Simmons, obriga o jovem Andrew (Miles Teller), aluno de bateria, a esforços terríveis para disputar o lugar na orquestra que ele dirige.
Gervitz parte para algumas interpretações psicanalíticas sobre a relação entre o aluno e o professor que não vou nem discutir. O que me chamou atenção no artigo de Gervitz foi esse trecho:
“A música é tida como a mais abstrata das artes e o jazz, o mais livre dos gêneros. Salta aos olhos a ignorância musical de Chazelle, que escolheu o jazz para fazer a apologia da precisão, pois é justamente nesse gênero que o improviso é considerado o momento máximo, escapando a qualquer partitura e limite. Falo do jazz moderno, que ganha força com Charlie Parker, tantas vezes citado no filme, como o músico que caiu em si depois que lhe atiraram um prato na cabeça (!!!).
O conceito tecnocrata de perfeição confunde grande arte com virtuosismo, ignorando a grandeza da performance jazzística em que os instrumentistas criam sós e conjuntamente, desafiando o que é certo e errado e entregando-se ao desconhecido.”
E vai por aí, criticando duramente a ideia de perfeição expressa por Fletcher no filme.
Bom, não sou músico, nem cineasta, nem teórico de musicologia e muito menos de jazz. Só gosto de ouvir. E de ver filmes. E fiquei muito impressionado com Whiplash.
Evidentemente os “métodos pedagógicos” de Fletcher, que estão no centro da estrutura dramática do filme, são altamente questionáveis.
Mas acho que Gervitz confundiu a criatividade fundamental do jazz com algo que lhe é estranho: incompetência técnica para estar à altura das necessidades da execução e da criação. Confundir precisão com criatividade não é o caso ali. Lembremos sempre: a história acontece dentro de uma escola.
Fazendo uma pequena digressão pela literatura. A proliferação de porcarias publicadas, autopublicadas e mesmo editadas por aí, parte da curiosa noção de que “qualquer um” pode escrever, “fazer literatura”. Pombas, se o escritor não domina as técnicas necessárias para enfrentar o gênero no qual deseja se expressar, o fracasso – ou, no mínimo, a mediocridade – salta aos olhos de qualquer leitor com um mínimo de contato com a boa literatura. É preciso muita técnica para passar impunemente da terceira para a primeira pessoa em uma narrativa, e transformar isso em uma expressão criadora. “Escrita automática” – e que perdoem meus queridos surrealistas que andaram experimentando, e logo abandonaram essa coisa, pode gerar “romances” espíritas ou “inspirados”, cheios de boas intenções e totalmente vazios de qualidade literária, prontos apenas para acalentar a alminha de seus leitores.
Em resumo, “falar” um idioma não qualifica ninguém como criador de literatura no próprio. E soprar mal e porcamente um sax, ou batucar caixinha de fósforo em mesa de bar não transforma ninguém em músico.
Ora, Whiplash conta uma história que se passa em uma academia de alto nível. Ali se está para aprender, entre outras coisas, as técnicas de cada instrumento. Técnicas absolutamente necessárias se o músico quer improvisar, tocar com os outros. A seção rítmica, então, simplesmente não permite erros: se o cara perde o tempo, literalmente fode com o trabalho de todos os outros músicos.
Outra coisa que me pareceu estranha foi uma certa confusão entre a liberdade de criação – e os solos tão característicos do jazz – com uma certa experimentação “sem regras”. Não me parece ser uma verdade absoluta. As “jam sessions” acontecem em dois contextos. O primeiro, o mais importante, é precisamente o processo criativo da performance. Naquele momento os músicos se jogam. Mas estão sujeitos ao crivo dos colegas que aceitam ou não o que ele faz naquele momento para se integrar à contribuição no arranjo coletivo. Na hora da apresentação pública, o arranjo já está bem consolidado. Pode até não estar em uma partitura, mas não é a hora de sair do combinado. O segundo tipo de “jam sessiom” é quando um conjunto se reúne mais informalmente, às vezes com outros músicos e, desde que haja uma qualidade técnica parelha entre esses músicos, e se diverte – e improvisa, sobre trechos conhecidos, standards ou temas daquele grupo, mas conhecidos por todos. Só que desse segundo tipo de experiência, que realmente pode ser extremamente gratificante, o resultado se esvanece no final da sessão. A menos que algum dos integrantes depois use o material para o desenvolvimento da performance do grupo, de modo permanente. Alguns dizem que o verdadeiro jazz é só esse. Eu não vejo uma contraposição entre a experimentação e a performance pública de arranjos consolidados.
Certamente, e isso é essencial no jazz, existem os momentos de improvisação, os solos. Mesmo esses seguem regras, não são tão “livres” como se quer pensar. Estão dentro do tema e se desenvolvem dentro dos padrões melódicos e harmônicos desse. Mesmo as “transgressões”, como já ficou abundantemente provado são, na verdade, projeções harmônicas bem construídas dentro da estrutura original. Se não, vira simples cacofonia.
Evidentemente existe evolução dentro dos grupos. Quem já ouviu – para ficar também em um clássico – vários arranjos desenvolvidos pelo Duke Ellington para qualquer uma de suas músicas, percebe as mudanças. Que acontecem tanto na estrutura dos arranjos quanto na adaptação às diferentes formações dos conjuntos ou de seus integrantes.
Qual o diferencial que aparece na apresentação pública – seja lá qual for o arranjo combinado – o modo de executá-lo é o que distingue grandes intérpretes dos medíocres. O ruim simplesmente erra o tempo, desafina, pula notas, deixa os demais músicos pendurados ou correndo atrás dele. O medíocre pode tocar certinho, mas vai soprar um sax como um Charlie Parker, ou um Coleman Hawkins (para pegar um mais antigo, e tão bom quanto)? Nem vem. Isso não acontece.
Os elementos rítmicos do conjunto de jazz são essenciais para manter a unidade do grupo, principalmente quando a execução tem mudanças de tempo. Sem o baterista e o contrabaixista, a coisa fica difícil. Principalmente no caso do primeiro, a técnica – e o treinamento para manter constante a evolução da estrutura rítmica – a receita desanda. Um membro do grupo de sopros pode até perder um tempo, ou pular uma nota, mas se o baterista erra, lascou-se. E nem sou lá grande fã desses solos às vezes imensos que abrem para os bateristas. Para mim, o trabalho de base é mais importante.
Enquanto escrevia essas mal-traçadas – e talvez mal-informadas – linhas, ouvia um CD bem interessante: Wyinton Marsalis, Willie Nelson e Norah Jones em uma apresentação ao vivo em homenagem à música do Ray Charles, gravada em 2011. Querem uma mistura mais heterogênea? É difícil achar: um músico “country” com voz e guitarra característicos, uma cantora mais pop e um trompetista da mais pura tradição jazzística, e seu conjunto. Depois dei uma “googlada” para ler as críticas. Em geral, muito elogiosas. Mas um dos críticos reclamava exatamente dessa heterogeneidade. O crítico do The Daily Telegraph disse: “perhaps a result of the one-off nature of the project making it hard for the musical personalities to fully gel”. Ou seja, o fato de ser uma experiência única torna difícil para essas personalidades musicais se integrarem totalmente”. E olhem que, com certeza, ensaiaram bastante.