Serei eu Charlie?

Nos dias seguintes ao atentado, ao lado das manifestações de solidariedade e pesar pelos assassinatos, apareceram também artigos lembrando o racismo, a islamofobia que assola a Europa (não apenas lá, é claro), e quem lembrasse também que o PC (a droga do politicamente correto, aussi dit bon sense) e até o bom gosto não permitiriam que as caricaturas do Charlie Hebdo circulassem impunemente.

Não cheguei a ler nenhum que afirmasse que as caricaturas “justificavam” a raiva dos jovens terroristas. Mas vários levantaram a questão de que o ambiente racista, e particularmente islamofóbico, na França de hoje, criava esse “caldo de cultura” de ressentimentos que, em última instância, levou à tragédia.

Não concordo.

Vou tentar examinar mais de perto.

Um dos mais elaborados artigos que li foi escrito por Zuni, que mantem o blog Descolonizações. O argumento de Zuni se desdobra em vários aspectos.

Zuni começa assim estruturando seu argumento: “Entretanto, não quero falar agora sobre as divergências de opinião, e sim sobre o consenso, expresso no slogan “Je suis Charlie” (Eu sou Charlie), que inundou as redes sociais e capas de jornais ao redor do planeta. O slogan é atrelado à ideia de que o que ocorreu ontem na França implica um atentado contra a liberdade de imprensa e valores democráticos ocidentais; implica dizer que toda imprensa é livre pra publicar irresponsavelmente qualquer conteúdo; implica dizer que o direito de zombar de uma religião é o mesmo que lutar pelo estado laico; e implica, principalmente, que o ataque foi simplesmente resultado do extremismo (ou da falta de senso de humor) religioso diante de uma critica “ácida e sagaz”, excetuando-se todo o contexto de marginalização e discriminação da comunidade muçulmana na França. Principalmente, implica ignorar à que se propõe e quais os efeitos dessas charges no contexto político-ideológico de um país com níveis alarmantes de racismo”.

A questão das piadas racistas e homofóbicas é amplamente tratada. Cita o caso de seus pais, quando o macho da casa repetia incansavelmente piadas machistas para a mãe, que sorria amarelo. Menciona o notório caso do Gentili e seu racismo e machismo que se expressam repetidamente. Mas, principalmente, assinala como o preconceito contra os imigrantes, e particularmente a islamofobia, grassa na Europa e na França, e se torna componente importantíssimo no discurso da direita (desde o “moderado” Sarkozy até a babenta Marine Le Pen).

Por outro lado, levanta a questão da liberdade de expressão, qualificando as medidas do parlamento francês de impedir o uso de véu nas escolas como censura à liberdade de expressão. Afirma que “a França tornou-se o primeiro país do mundo à proibir manifestações de apoio à Palestina, durante os bombardeios israelenses à Faixa de Gaza, que assassinaram 1.951 pessoas e feriram 10.193 civis. Qualquer pessoa que participasse de um protesto contra os crimes de guerra de Israel, praticas de Terrorismo de Estado respaldadas ideologicamente por políticos e formadores de opinião entre a população israelense através de fundamentalismo nacionalista e argumentos de fundamentalismo religioso judaico e islamofobia, seria preso por um ano ou pagaria multa de 15 mil euros. Se o manifestante cobrisse o rosto durante o protesto, a pena subia pra três anos de detenção” (sic).

De fato, houve proibição de manifestações em Paris, diante de conflitos e depredações, e que foram suspensas em seguida. A legislação francesa prevê as sanções (não o agravamento por conta do uso de véu, e sim por conta do uso de máscaras) para manifestações não autorizadas. E lembremos da polêmica sobre os mascarados por aqui. Não foi, portanto, dirigida especificamente contra a situação em Gaza, e tentar caracterizar dessa maneira a legislação (da qual sou contra) não é correto.

Quanto ao conflito em Gaza, François Hollande foi taxativo, evidenciando a impossibilidade de se manter neutralidade diante do caso. Laurent Fabius, ministro de Relações exteriores declarou: “Quantos mais precisarão morrer para que se pare o que só pode ser chamado de carnificina em Gaza? A tradição de amizade entre a França e Israel é antiga e o direito de Israel buscar sua segurança é total, mas esse direito não justifica o assassinato de crianças e o massacre de civis.” Isso tudo, evidentemente, não elimina a hipocrisia do governo francês, como expressa a falta de pejo de convidar o genocida Netanyhau para as manifestações do domingo contra os assassinatos.

A posição do Zuni vem se expandindo. Leonardo Boff republicou um texto do jornalista Rafo Saldanha  e Tariq Ali, romancista e militante contra a islamofobia, (que eu admiro muito) também publicou artigo na FSP que tem pelo menos um parágrafo que considero problemático. Diz ele, no artigo que “ao contrário dos inquisidores medievais da Sorbonne, eles não têm a autoridade legal e teológica para assediar livreiros e donos de gráficas, proibir livros ou torturar escritores, de modo que se sentem livres para dar um passo além”. É bom lembrar dos inquisidores, mas o fato é que a questão da “autoridade” não resolve nada.

Um argumento sempre presente nessas manifestações pode ser assim resumido: a França tem cerca de 6 milhões de muçulmanos. Boa parte deles já são franceses de nascimento, filhos de imigrantes, ou imigrantes, principalmente do Magrebe, e eles se sentem ofendidos com as charges do Charlie Hebdo, que promovem a islamofobia e zombam de suas crenças. Boa parte dos que manifestaram suas reservas ao jornal dizem que o fato de publicarem também charges contra outras religiões não justifica o que fazem com o islamismo.

O argumento sempre se centra na situação de marginalidade, pobreza e preconceito que sofrem os muçulmanos franceses, ou na França. Bem, nesse caso é preciso deixar bem claro que isso daí é uma manifestação de algo mais profundo: chama-se sistema capitalista, que promove a exclusão, a exploração e a marginalização de modo sistemático. O racismo é tão somente um epifenômeno dessa característica mais ampla. Aparece aqui no Brasil como essas supostas elites assumindo que pobre/preto = ladrão e outras pérolas do mesmo gênero. Evidentemente, provoca dores e sofrimentos específicos nessas populações. Que, aliás, mudam de tempos em tempos. Perguntem aos portugueses que migraram para a França ou para a Alemanha nos anos 60/70 como eram tratados?

Olivier Cyran, que foi colaborador do Charlie Hebdo, há mais de um ano publicou artigo bem fundamentado, longo (e chato) dizendo que o jornal vinha celeremente se transformando em porta voz da islamofobia. Ivone Benedetti desencavou o próprio.  Enfim, por aí vai.

Em uma palavra: o Charlie Hebdo conseguia(e) ser, ao mesmo tempo, parte de uma tradição francesa que remonta a antes da Revolução. Mas, ao mesmo tempo, descambou recentemente para posições islamofóbicas, sim. O país que produziu Sade, Voltaire e tantos e tantos outros tem uma tradição cultural enraizada de iconoclastia. Que já custou outras vidas e não é mantida sem lutas. E isso é importante.

Existe uma questão de fundo nessa situação que deve ser objeto permanente de reflexão. A situação no Oriente Médio e em outros países da Ásia e da Oceania – nem todos islâmicos – é tratada pela superpotência dominante e seus aliados como uma questão de força. Os EUA, a Inglaterra, a França e seus aliados menores acham que resolvem tudo na ponta de bombas e com intervenções militares. O sonho de impor o modelo de democracia americana (sem se dar ao trabalho de ver o rabo sujo que tem lá dentro) faz que o uso da força se espalhe e, consequentemente, gera reações igualmente estúpidas.

Quando pessoas com um mínimo de bom senso, como foi o caso da Presidenta Dilma na Assembleia da ONU, afirmam que a questão passa por negociações e respeito, os trogloditas já partem para dizer que se é conivente com as degolações desses insanos do tal califado. O buraco, infelizmente, é mais embaixo. E essa atitude arrogante vai se espalhando e criando tragédias pelo mundo inteiro.

Os críticos ao Charlie Hebdo sustentam que deve-se respeitar a cultura do Islã, e que a atitude do jornal era profundamente ofensiva e criou o caldo que o transformou em alvo.

Defendo o respeito às manifestações culturais de cada povo. Como cidadão, como antropólogo e como alguém que pensa que isso é condição para vivermos em paz: respeito.

Por isso mesmo, quem vai para um país muçulmano deve atentar para as proibições e costumes culturalmente estabelecidos: as mulheres devem, sim, usar véu, e todos devem se abster de beber álcool em público. Desobedecer isso é falta de respeito e provocação.

Mas o inverso também é verdadeiro. Quem mora na França tem que absorver certas tradições culturais, inclusive a iconoclastia. Sejam lá quais as razões pelas quais foram morar lá.

No fundo, como acho todas as religiões ridículas, já nem me importo pessoalmente com essas manifestações exteriores de religiosidade. Fico atônito ao ver os judeus de certas seitas ortodoxas usando capotes apropriados para o frio siberiano no verão brasileiro. Azar o deles se querem ter essa sauna particular como expressão de religiosidade. Ou muçulmanas usando hijab. Problemas deles.

Eu, como disse São Luís Buñuel, único santo de minha devoção: “Graças a deus, sou ateu”.

Mas me incomodo profundamente com as invocações à divindade na Constituição, com crucifixos em tribunais, no Congresso e em algumas repartições públicas. Ainda temos muito que fazer para garantir o caráter laico do Estado, e acho correta a atitude dos legisladores franceses que enfatizaram isso, proibindo o hijab nas escolas e presépios como iniciativas públicas. O Papai Noel e a cafonália natalina que enfeia nossas cidades em dezembro é tão ridícula que também já nem me incomoda.

O atentado foi um ato político desses terroristas. Atacaram o jornal, como poderiam ter atacado outros alvos. Mas o fato é: atacaram o jornal e assassinaram os jornalistas.

Por isso mesmo, foi TAMBÉM um ataque à liberdade de expressão.

E a questão central disso tudo é:

– Proibir não adianta nada. Impedir de fazer piadas machistas, homofóbicas, islamofóbicas e racistas em geral não elimina os problemas. Só lhes dá uma capa de ocultação.

– Proibir o outro, principalmente no caso da liberdade de expressão, é também me proibir de esculhambar pulhas de todos os gêneros, desde os Danilo Gentili até os Reinaldo Azevedo, Olavo Carvalho, a Veja e outros jornalões.

Assassinatos, só acrescentam a tragédia.

Por isso mesmo, e malgré eles mesmos,

Je suis Charlie.

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