O filme de Jean Renoir, lançado em 1937, faz parte da caixa “A Primeira Guerra no Cinema – Seis Clássicos sobre o Conflito” – lançado pela Versátil para lembrar os 100 anos daquela que foi chamada de Grande Guerra, a “Guerra para acabar com todas as guerras” e que resultou, na verdade, ser apenas a batalha introdutória de um século polvilhado de conflitos sangrentos, com milhões e milhões de mortos. Só para citar um dado, Picketty, em seu “O Capital no Século XXI” lembra que nessas duas guerras mundiais – em especial na segunda – houve realmente um declínio no patrimônio dos mais ricos, que se recompôs – velozmente, aliás – depois de 1945.
O filme de Renoir, finalizado quando a Guerra Civil Espanhola já estava em pleno curso, mostra desde o título que essa história da “guerra para acabar com todas as guerras” era simplesmente uma grande ilusão. O filme pacifista – sem nenhuma cena de batalha – foi imediatamente detectado pelos nazistas e fascistas como uma peça de denúncia da xenofobia e, principalmente, como as questões de classe estão umbilicalmente envolvidas nos conflitos bélicos. Goebbels determinou que o filme fosse o primeiro e um dos principais alvos da apreensão quando os nazistas conquistaram a França, pois Renoir havia sido definido pelo chefe da propaganda hitlerista como “Inimigo Público n. 1 no Cinema”. Goebbels sabia muito bem o que fazia, mestre que foi no uso de filmes como instrumento de mobilização e propaganda.
O título de “A Grande Ilusão” faz referência a um romance do mesmo título de Norman Angell, hoje pouco conhecido, mas um tremendo sucesso quando lançado em 1913, e que argumentava que a guerra era algo fora de moda, não cientifica e absurda, e por isso mesmo uma grande guerra europeia “não poderia acontecer”. Renoir sabia que o público reconheceria a alusão em suas múltiplas acepções, inclusive pelo fato de que a ideia do autor não se revelou uma profecia correta. No entanto, no relançamento do filme, em 1958, o trailer – um Jean Renoir conversando com os espectadores – ele diz que a história se baseia nas façanhas de um seu camarada piloto, Pinsard, que foi feito prisioneiro sete vezes e fugiu outras tantas para voltar a pilotar.
O roteiro se baseia em grande medida também na experiência de vida de Renoir, que foi piloto militar e ferido várias vezes, embora não tenha sido prisioneiro de guerra. Depois do filme lançado, um militar francês Jean des Vallieres, autor de um romance bem chauvinista intitulado “Kavalier Scharnhost” processou Renoir e o roteirista Charles Spaak por plágio, mas foi derrotado nos tribunais. Entretanto, historiadores reconhecem que alguns traços do roteiro foram realmente inspirados no romance. Renoir declarou várias vezes que memórias de prisioneiros de guerra fazem parte da história e não são propriedade particular. Como se percebe, o filme é uma colcha de retalho de relatos e experiências vividas por vários personagens.
O filme conta a história centrada em dois oficiais franceses, o tenente Maréchal (Jean Gabin) e o capitão de Boeldieu (Pierre Fresnay), que são abatidos em um voo de reconhecimento e aprisionados. Passam por vários campos de prisioneiros, sempre tentando fugir, até chegar ao último, uma fortaleza em uma escarpa, de onde Maréchal e Rosenthal (Marcel Dalio), judeu riquíssimo que também havia sido feito prisioneiro de guerra, conseguem fugir. A fuga tem sucesso graças a um truque bolado por de Boeldieu, que acaba morrendo nas mãos do comandante von Rauffenstein (Erich von Stroheim), o piloto que abateu os dois.
Na fuga, Rosenthal escorrega e torce o pé, atrasando e dificultando a caminhada. Maréchal ameaça abandoná-lo, mas volta para ajudá-lo a caminhar. Abrigam-se em uma cabana e são surpreendidos pela dona, uma fazendeira alemã que trazia a vaca para o estábulo. A mulher acaba protegendo os dois. Conta que perdeu o marido e todos os irmãos em batalhas na guerra. Ela e Maréchal se apaixonam e, quando os dois voltam a fugir para chegar à Suíça, Maréchal promete voltar depois da guerra. Uma patrulha alemã os localiza e vai disparar nos alvos visíveis na neve, mas o sargento detém o soldado. “Eles já estão na Suíça”. Antes, Maréchal comentou com o “judeu sujo”, abraçando-o, que as fronteiras eram coisas dos homens, não da natureza.
O filme, que foi o primeiro estrangeiro a ganhar o Oscar de Melhor Filme, ganhou também, no Festival de Veneza, o que seria o Prêmio Mussolini e foi transformado em “Prêmio Volpi” para o Melhor Filme e Melhor Diretor. A mudança se deu ao fato de que o filme estava banido na Itália Fascista, embora participasse do Festival.
A trama sintetizada não faz justiça às sutilezas do filme. As questões de classe estão presentes o tempo todo. A começar por uma exclusão: os personagens são todos oficiais, nenhum soldado raso aparece como personagem. Mas, entre os oficiais, as diferenças são marcantes. Estão os dois aristocratas, inimigos na guerra, mas extremamente afins, e presos ao “sentido do dever”. No diálogo final entre Rauffenstein e de Boeldieu, quando este agoniza depois de ser atingido por um disparo do primeiro ao fazer uma ação de diversão que permitiu a fuga dos outros dois, o melodramático predomina: “Uma bala no estômago dói demais”, diz o ferido. “Eu queria atirar nas pernas”, responde o alemão. “Ora, você estava a mais de cinquenta metros e estava escuro”. “Sinto muito”. “Você cumpriu seu dever. Se fosse eu, teria feito o mesmo”.
Em um diálogo anterior, Rauffenstein ordena seus comandados que não revistem as coisas de de Boeldieu, que lhe dá “sua palavra de honra” de que não esconde nada. Estava mentindo, pois preparava a fuga dos companheiros.
Dois diálogos interessantes, o primeiro entre de Boeldieu e Maréchal, quando confabulam a fuga. Diz de Boeldieu, “Para nós (aristocratas), morrer na guerra é natural. Para vocês o importante é sobreviver”. E entre Maréchal e Rosenthal, o primeiro comentando: “Ainda bem que nós dois estaremos juntos, porque somos parecidos. Você é o mais rico de todos nós. Se eu e você ficássemos falidos, não teríamos problema nenhum até em mendigar, mas de Boeldieu não suportaria isso”. Antes, Maréchal havia comentado como de Boeldieu: “Você nunca faz nada como os outros”. Ou seja, dois franceses separados por classe e história.
Vários outros momentos do filme mostram essa curiosa mistura entre camaradagem “nacional” interclassista entre as elites (são todos oficiais), mas que não deixa de mostrar diferenças de origem e de posição social, e a camaradagem que se estabelece entre os dois aristocratas, que demonstram ter profundas afinidades sociais, embora o “dever” (mais que a nacionalidade) os obrigue a se enfrentar. O soldado alemão que vigia Maréchal, colocado em solitária, oferece a ele cigarros e uma gaita para que se distraia no isolamento, e evidentemente está aborrecido com o que acontece com o prisioneiro que vigia.
Renoir foi criticado, na época, por mostrar cenas de uma vida quase aprazível dos oficiais prisioneiros. Renoir, em 1958, lembra que a I Guerra Mundial ainda não estava marcado pela barbárie nazi-fascista, e deixa claro aos franceses (em 1937), que “os alemães são humanos”.
Duas cenas tragicômicas do filme são muito interessantes. A primeira teve um grande impacto, e funciona assim até hoje. Os prisioneiros encenam um espetáculo de vaudeville, em torno de Carette, ator e comediante bem conhecido na época. Oficiais ingleses atuam travestidos na farsa, que é assistida por oficiais prisioneiros e também pelos alemães, que se divertem juntos. No meio do espetáculo, Maréchal entra no palco para anunciar que “o forte Douamont havia sido recuperado pelos franceses”. Um dos oficiais ingleses tira a peruca e pede aos músicos que toquem a Marselhesa, que todos os prisioneiros cantam, e que rende a Maréchal o confinamento na solitária.
Esse forte Douamont, parte das defesas de Verdun, foi cenário da batalha mais sangrenta da I Guerra Mundial. Tomado pelos alemães, retomado pelos franceses, tomado e retomado depois nessa batalha que rendeu 100.000 baixas aos franceses, e algo entre 750.000 e um milhão de baixas entre todos os exércitos envolvidos. A citação, evidentemente, remete tanto à crueldade quanto à inutilidade da guerra em um filme pacifista no qual não se vê nenhuma cena de batalha.
Os oficiais prisioneiros podiam receber pacotes, entregues através da Cruz Vermelha, com alimentos e objetos de uso enviados pela família. Rosenthal, o mais rico deles, recebe muitos pacotes com iguarias, que distribui entre todos. Um dia os franceses são convidados pelos oficiais russos para abrir e compartilhar uma grande caixa que lhes havia sido enviada “por nossa generosa czarina”. A promessa de caviar, vodca e outras iguarias entusiasma a todos. Abre-se o caixote e, debaixo da palha, centenas de livros de filosofia, religião, etc. Nada que interessasse aos prisioneiros naquele momento, que acabam incendiando o caixote com os livros, embora sob o protesto de alguns. (Nessa hora lembrei das famosas listas preparadas por leiturólogos e enviadas para as bibliotecas, onde repousam no fundo das estantes).
Os atores estão todos ótimos, e o desempenho se mantém, embora em alguns momentos sejam evidentes os maneirismos de interpretação da época. Jean Gabin, o ator principal, foi especialmente bem fotografado. Consta que seus olhos recebiam uma iluminação especial nas tomadas em close-up. Dita Parlo, a camponesa alemã que abriga os fugitivos, trabalhou depois em “Atalante”, de Jean Vigo. Pierre Fresnay (de Boeldieu) atuou nos filmes de Marcel Pagnol e com Hitchcock (“O Homem que Sabia Demais). De Erich von Stroheim nem é preciso falar. Marcel Dalio (Rosenthal) voltou a trabalhar com Renoir em “La Régle du Jeu”. Também fez o papel do Capitão Reynaud em uma série de televisão baseada em “Casablanca”, o icônico filme de Michael Curtiz e construiu uma longa carreira no cinema francês.
A história da recuperação do filme também é curiosa. Por muitos anos se pensou que o filme havia sido destruído em um ataque aéreo aliado a Berlim, já que uma das cópias apreendidas pelos alemães, na verdade, o negativo original, foi contrabandeado para a Alemanha por um arquivista de cinema, nazista, chamado Frank Hansel. Quando os soviéticos ocuparam Berlim, o filme acabou sendo enviado para um arquivo em Moscou. Por volta dos anos 60, houve uma troca de obras entre as cinematecas de Moscou e Toulouse, que incluía o filme. Quando Renoir trabalhava na restauração, a partir de outras cópias recuperadas, acabou descobrindo que a cópia de Toulouse era do negativo original, em nitrato, mais completa que a cópia com que trabalhava, recuperada pelos aliados em Munique.
Em tudo e por tudo, um filme que vale a pena ser visto. Pela categoria dos atores, da direção do roteiro. E pelas “grandes ilusões” – principalmente as de classe – que permanecem até hoje. Naquela época, como hoje “vivemos em um tempo de guerra, vivemos em um tempo sem paz”.
Boa parte das informações históricas sobre o filme e seus intérpretes foi recuperada a partir do IMDB – Internet Movie Data Base (que pertence à Amazon).