Meu amigo Bessa, que marinou no primeiro turno, publicou antes da eleição mais uma de suas colunas nas quais o dito latino é aplicado com justiça e precisão: ridendo castigat mores.
E, antes de transcrever a coluna, alguns primeiríssimos comentários meus depois de votar, roer as unhas na apuração e comemorar, com amigos, a vitória.
Algumas pautas foram ignoradas ou maltratadas na campanha. Meio-ambiente, índios e cultura.
São assuntos que, se não forem tratados com seriedade no próximo governo, podem trazer consequências ruins para a administração Dilma, para o PT e, principalmente para o futuro do país.
Nem vou me deter muito aqui nos dois primeiros temas, que o Bessa trata com mais competência que eu, e que minha filha Galiana, ecologista militante, fica de olho para que eu não escorregue no assunto.
Mas aproveito duas palavrinhas sobre a questão da cultura.
A primeira observação é sobre o uso e abuso de artistas (e “famosos” em geral, como jogadores de futebol e outras personalidades) nas campanhas. Até entendo que isso tenha seu efeito na atração de determinados segmentos de eleitores. Até aí, tudo bem.
Mas fico preocupado, e triste, quando se outorga a essas personalidades uma importância digamos, conceitual, na questão cultural. E, principalmente, quando se tenta ligar esses personagens a determinadas opções políticas. Acho que todos podem se manifestar como cidadãos, e se as pessoas ganham certa notortiedade por conta de suas profissões, tudo ok.
Mas não se pode misturar as estações.
Na última quinta-feira fui assistir a um fantástico espetáculo do Trio Corrente com Paquito D’Rivera, o músico cubano. Ora, o Paquito é ferozmente anti-castrista. Disse, em entrevista, que seu colega Chucho Valdez – que, com ele e Arturo Sandoval constituíam o lendário Trio Irakere – não tinha culhões para ser contra Fidel. Paquito e Sandoval já saíram de Cuba faz tempo. Chucho, aliás, vive na Espanha, mas não rompeu com o regime.
E, para mim, duas coisas são claras: todos são músicos geniais e curto o trabalho deles pelo que fazem, não pelas atitudes políticas que tomam. E recuso – como alguns cubanófilos – a qualificar Paquito e Sandoval de “gusanos” e acusá-los de não serem patrióticos. Nada disso. Como cidadãos, podem expressar suas posições políticas sem que isso afete o que penso ou deixo de pensar da música deles.
O mesmo posso dizer de alguns casos brasileiros. Por exemplo, considero o Chico Buarque um grande compositor em sua fase inicial. Acho que é um romancista medíocre e supervalorizado. E não mudo minhas opinião sobre sua obra pelo fato dele ter apoiado a mesma candidata que apoiei e fiz campanha nessas eleições, a vitoriosa Dilma Roussef.
Votei nos candidatos do PT nessas eleições apesar de sérias restrições à política cultural dos dois governos do Lula, e de problemas que considero não resolvidos neste primeiro mandato da Dilma. Escreverei mais adiante com mais vagas sobre o assunto. Mas, com todas minhas restrições à política cultura, votei no Lula e na Dilma por conta da posição que mostram, na prática, sobre as grandes questões sociais do país.
Votei porque não voto simplesmente pelos meus interesses. Voto pelo que considero melhor para o país, sempre crítico e militante.
E, sem mais delongas, à crônica do Bessa. (Babá, desculpe pelos meus pitacos prévios).
A MÃE DE PEZÃO, DILMÉCIO E OS ÍNDIOS
José Ribamar Bessa Freire
26/10/2014 – Diário do Amazonas
Depois do último debate chocho, pergunto sem querer xingar: será que Aécio tem mãe? E Dilma tem mãe? Eles têm mãe? Viva, quero dizer. Sei lá! Só sei que quem tem mãe vivinha da silva é o Pezão, governador do Rio (PMDB vixe!) que quer se reeleger, tanto que apoia os dois candidatos a presidente. Não emprestou, porém, a nenhum dos dois sua mãe, capaz de decidir a eleição. Dona Ercy de Souza, 84 anos, mulher simples do interior, curso primário incompleto, vestida modestamente, foi a estrela da propaganda eleitoral na tv e no rádio. Falou sobre os valores com os quais criou o filho:
“Humilde, humildade, sempre pisar no chão. Humildade é tudo na vida, sempre falo para ele. Nunca deixar nada subir à cabeça porque tudo passa. Você tem que ser sempre o que você é. Meu filho, cuida das pessoas como eu cuidei de ti”.
Este depoimento, repetido à exaustão no horário eleitoral, me deixa arrepiadinho (passa a mão no meu braço, leitora, espia só os cabelinhos todos em pé). Com voz mansa, boca ligeiramente torta e o chiado do sul fluminense – humildche, humildadche – ela nos traz uma verdade para esse mundo de mentira. Eu sei, eu sei, a ingenuidade não é boa conselheira, a marquetagem é sempre falsa, mas o depoimento é uma coisa, o uso dele é outra. A marquetagem vê em mamãe Pezona uma máquina de votos; para nós, ela tem outra dimensão, é mãe de verdade, como a da gente: fofinha, luminosa, sábia. Linda!
No primeiro turno, convencido e entusiasmado, votei em Tarcisio (PSOL) para governador. Agora, sem opção, ia anular, mas dona Ercy me convenceu a votar nela – humildche. Quem saiu de um útero desse calibre não pode ser cem por cento efedêpê, ainda mais enfrentando o trio da sujeira – Crivela (vixe), Garotinho (vixe) e Lindinho (vixe). É mais fácil fazer oposição a um vixe do que a três vixe-vixe-vixe. Crivella, além disso, ameaça os povos do terreiro e Lindinho é declaradamente contra os índios.
Remembrancer
– Porra, Babá, não enche o saco, não faz ponte, o que é que a mãe do Big Foot tem a ver com os índios? – pergunta Chachá, uma amiga desbocada de Manaus que não gosta da temática indígena.
Pois é, menina, concordo, quem escreve ou dá aulas deve puxar e não encher o saco dos outros. No semestre passado, caminhava eu pelo corredor da universidade e ouvi sem querer a conversa de duas alunas à minha frente. Uma delas perguntou com quem a outra teria aula.
– Com aquele chato monotemático que só fala de índio, índio, índio.
O chato era eu. Quando me viu, empalideceu com receio de represália, improvável aliás, pois ela tem razão. Sou professor há meio século, já ministrei disciplinas que até o capiroto duvida. Daria aula de química inorgânica se pudesse acrescentar um tópico: “a classificação Guarani do fósforo, cloro e oxigênio”. Ministraria a disciplina Estruturas no Curso de Engenharia se o professor dela, Gilberto Moraes, me orientasse e se a ementa contemplasse “a visão dos Tuyuka sobre os orifícios retangulares em vigas de concreto armado na construção das modernas malocas”.
A sociedade brasileira é treinada – eu diria adestrada e amestrada – para apagar os índios do seu horizonte e invisibilizá-los. Quem anda na contramão é, portanto, um chato, mas esse talvez seja nosso destino, como diz Peter Burke em “O mundo como Teatro: estudos de antropologia histórica”. Historiadores são guardiães de fatos incômodos, de esqueletos no armário da memória social, como aquele funcionário na Inglaterra denominado de remembrancer (recordador), na verdade um coletor de impostos, cujo trabalho consistia em recordar às pessoas aquilo que elas gostariam de esquecer.
Num poema em que define o perfil do historiador, Carlos Drummond diz que ele “veio para contar o que não faz jus a ser glorificado”, por isso “é importuno, sabe-se importuno e insiste, rancoroso, fiel”. Rancoroso não no sentido de vingativo, mas com conotação positiva de ferido, ofendido, dolorido.
O erro de Churchill
Quando insisto na importância das culturas e línguas indígenas para o país, tema ausente até nas perguntas dos indecisos no debate desta sexta, há quem fique incomodado. Mas a questão indígena e a ambiental não foram contempladas nesta campanha. Levantamento realizado pela Folha de SP mostra que apenas 12% do espaço dos programas no horário eleitoral discutiram propostas, nenhuma delas sobre índios. Podiam substituir um minutinho dos xingamentos para falar ao Brasil sobre a situação de quem está aqui há milênios.
Aliás, parece que finalmente não cometeram o erro de Churchill na Segunda Guerra Mundial. Vicente Reis, colunista do Jornal do Commércio de Manaus, assinava na época artigos inflamados com conselhos aos generais americanos e ingleses. Um dia ousou escrever: “Se Winston Churchill, primeiro ministro britânico, tivesse seguido as minhas recomendações da semana passada, Londres não teria sido bombardeada pelos alemães”.
Bem feito! Quem manda o Churchill não ler, na época, o jornal de maior tiragem de Manaus! Dilma e Aécio não cometeram tal erro. Na última hora, embora ausente da propaganda eleitoral, os índios mereceram duas postagens nas redes sociais. Uma de Aécio propondo a “ampliação do diálogo com as comunidades indígenas para criar uma agenda de prioridades”. Ou seja, algo tão genérico formulado por quem não tem o que dizer e quer enrolar, dando pequena satisfação aos eleitores de Marina.
A outra postagem foi uma Carta aos Povos Indígenas do Brasil, de Dilma, garantindo pelo menos que “nada em nossa Constituição será alterado com relação aos direitos dos povos indígenas”. Vamos cobrar. No entanto, ela justifica o engavetamento dos processos de demarcação de terras indígenas em seu governo por se tratar de “desafios na esfera jurídica”. Sabemos que se trata de uma questão política. A tal “base aliada” engessa Dilma, que repete na sua Carta o que a senadora Kátia Abreu, para quem ela pediu votos, proclama: índio não precisa de terra, mas de assistência social.
Amigos argumentam que não posso colocar os direitos dos índios acima dos interesses do Brasil. No pescoço francês, gaivota! Quando se fala em interesse nacional excluindo os índios é porque tem interesses privados escusos por baixo dos panos. Esse papo a gente ouve desde Thomé de Souza, Mem de Sá e Duarte da Costa. O interesse nacional implica línguas e culturas indígenas. A obrigação constitucional do Estado é garantir esses direitos, não apenas para reparar injustiças contra “coitadinhos”, mas para incorporar seus saberes e experiências na construção do Brasil moderno.
O ex-BBB Serginho, com foto no Instagram, diz que não fala com índio: “Tenho fobia de índio e de palhaço”. Esse pobre coitado é fruto do adestramento que lamentavelmente foi reforçado nesta campanha eleitoral, alimentado por omissão de marqueteiros e parafernália partidária. Nos debates, Dilma e Aécio nem sempre falaram como estadistas, mas em defesa de interesses empresariais privados. Os dois, embora se comportem como tal, não são ex-BBB. Deviam aprender com dona Ercy: humildsche. Domingo, Dilma 13 para presidente, sem entusiasmo. Para governador, voto com Dona Ercy, mas com uma pulga atrás da orelha.
É isso aí, Felipe, agora, como diz o hino do Nacional Futebol Clube, “Vamos à luta, lutar para vencer, se for preciso, lutar até morrer, lutar com disciplina e destemor, mostra para o mundo teu valor”