Uma das críticas mais recorrentes aos programas de transferência de renda feitas pelos livremercadistas e liberais de variado pelame é que não “abrem a porta de saída”, que “viciam”. Além do uso do famoso adágio: “é preciso ensinar a pescar, e não dar o peixe”.
Quero, aqui, apenas dar alguns exemplos singelos de como os programas de transferência de renda ajudam, sim, a economia crescer, abrem portas de saída, estimulam o empreendedorismo e criam uma nova classe média.
A região do Seridó, que abrange áreas dos estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba, era famosa produtora de algodão de alta qualidade, o algodão “mocó”. Era uma produção que abastecia tecelagens de todo o país com uma matéria prima de muito boa reputação.
Com a abertura das importações – “obra prima” iniciada pelo governo Collor e aprofundada no tucanato – a importação de algodão egípcio liquidou a competitividade daquela produção, e as áreas produtoras entraram em profunda decadência. A agricultura algodoeira liquidada, as plantações resumiam-se à agricultura de subsistência, para consumo local. A região, afastada dos grandes centros, não produzia para o mercado.
A situação de miséria era eventualmente mitigada – principalmente nos momentos de seca – com as “frentes de trabalho” e a distribuição mais ou menos ampla de cestas básicas. Estas, compostas essencialmente de produtos industrializados produzidos bem longe de onde moravam os beneficiados.
Pois bem, começam a entrar os recursos dos programas federais. Primeiro, a aposentadoria rural. Um salário mínimo para os velhos. Depois, com o governo Lula, o Bolsa Família.
Começam a acontecer coisas estranhas. Muito estranhas.
Tem gente que parece achar que os que recebem a aposentadoria rural e o Bolsa Família comem, literalmente, o dinheiro.
Como papel moeda é algo muito indigesto, o que acontece é que se faz com os recursos recebidos o que sempre se fez: compram-se coisas. Principalmente comida.
O primeiro resultado, portanto, foi o renascimento da economia local de alimentos: vendas armazéns, feiras mais movimentadas.
Dinheiro circulando movimenta a roda da economia.
Os críticos não percebem que o Bolsa Família tem limites de idade para ser recebido. Os pais podem continuar, mas os jovens que saem da escola começam e sofrer outras pressões. Apesar do limite ser o total da renda familiar, o fato é que os jovens adultos tinham que, de alguma maneira, começar a trabalhar. A opção mais comum era a migração para trabalhar no “Sul Maravilha”.
Só que passaram a vislumbrar outras possibilidades.
Foi assim que o empreendedorismo local fez ressurgir a industrial algodoeira, e dentro de um sistema produtivo que nós, antropólogos, conhecemos bem: economia familiar camponesa.
Rapidamente: na economia individualizada, clássica, o trabalho deve ser remunerado aos indivíduos, que com eles se sustentam. Na economia camponesa não é assim. A unidade de produção e consumo é o resultado do trabalho de toda a família, e está voltado para a satisfação das necessidades do conjunto do núcleo familiar.
Isso leva, eventualmente, à extensão da jornada de trabalho. As flutuações sazonais podem exigir uma intensidade de trabalho enorme em determinados momentos, que podem ser seguidos por períodos “vazios”. Dependendo das circunstâncias, esses períodos são preenchidos de diversas formas: manutenção dos equipamentos, artesanato, migração para trabalho temporário, etc.
Os habitantes dessas zonas simplesmente recuperaram a atividade econômica local. Os velhos teares e fiações – improdutivos e sem condições de competir com os métodos de alta produtividade – voltaram a produzir panos de prato, mantas e redes.
E essa produção, depois de um certo tempo, era colocada em caminhões, pela própria família, que se destabocava para vender redes, mantas e panos de prato não apenas pelas cidades maiores do Nordeste, como também para o resto do Brasil.
Com o progressivo crescimento, que é incompatível com os critérios de produtividade das grandes indústrias, mas totalmente racionais dentro de uma economia camponesa, chegaram a formalizar algumas empresas de porte um pouco maior e até a exportar.
Mas era um crescimento muito desordenado, que começou inclusive a produzir danos ambientais, com o aumento do uso de cloro e de tinturas industriais, vazados sem tratamento para as bacias hidrográficas locais, que às vezes são semi-perenes.
Ainda em 2003, o Ministério do Desenvolvimento iniciou um extenso programa, denominado de ARRANJOS PRODUTIVOS LOCAIS. Esses APLs mobilizavam não apenas os técnicos do MD, como também o Sebrae, o sistema de assistência técnica (as Emater estaduais), órgãos de financiamento (CEF e Banco do Brasil). Em casos específicos foi mobilizada também a EMBRAPA e até as federações patronais passaram a se integrar no apoio a esses programas. Os programas de apoio à agricultura familiar, do MDA tiveram papel importante nessa coordenação, assim como os Sindicatos de trabalhadores Rurais.
O resultado é muito significativo. Municípios como Jardim das Piranhas (bacia do rio do mesmo nome), no Rio Grande do Norte, em plena região do Seridó, se tornaram foco dessas ações, que repercutem em toda a região. Caicó, que é uma cidade de porte um pouco maior, concentra a movimentação bancária, por exemplo. E o comércio local floresce, é claro.
Ainda na mesma região há um APL do queijo, que ajuda na melhoria da produção de queijo de cabra, também tradicional.
A cidade de São Bento, na Paraíba, também na mesma região produtora de algodão, se transformou na maior produtora de redes do Brasil. São DOZE MILHÕES de redes produzidas anualmente. São cerca de 70 empresas formais e 300 informais. E não há desemprego na região.
Os velhinhos continuam recebendo a aposentadoria rural. As famílias com filhos nas escolas continuam recebendo o Bolsa Família. A renda per capita, apesar de ter crescido substancialmente, ainda é baixa, e precisa melhorar muito.
Acabaram os problemas?
Longe disso.
O desenvolvimento fez surgir novos problemas e desafios.
Na área econômica, a importação de têxteis da China – no início voltada principalmente para peças de vestuário – já está trazendo dificuldades. São peças de qualidade muito inferior, mas muito mais baratas. Os produtores locais jogam com a qualidade para manter sua fatia de mercado, e a assistência técnica procura abrir novos canais de comercialização.
Os problemas ambientais também devem ser enfrentados. Houve uma sensível diminuição do uso de cloro, mas os resíduos de tintas continuam afetando os recursos hídricos da região, e exigem ações renovadas de programas de tratamento, educação ambiental, etc.
A variedade de arranjos produtivos locais é enorme e se espalha pelo país: produção de frutas, confecções (em Goiás, por exemplo), queijos e produtos lácteos em geral, marcenaria, apicultura, produção familiar de biocombustíveis com mercado garantido pela Petrobras.
E por aí vai.
Nem tudo funciona bem, já disse. Mas o esforço de valorização desses empreendedores locais cria riqueza que é significativa a nível local, e se reflete em outras áreas da economia nacional: esse pessoal compra mais telefones, televisores, geladeiras, computadores, motos e automóveis. Financia residências no Minha Casa Minha Vida, viaja mais de ônibus e de avião (para desespero de algumas pessoas que sentem nojo ao ver aquelas pessoas calejadas pelo trabalho duro, felizes da vida viajando para fazer negócios, tirar férias, visitar os parentes).
É a mostra de como as intervenções redistributivas geram emprego, riqueza e prosperidade. Ajudam no empreendedorismo, aumentam a autoestima de quem estava antes sem perspectiva e que, com trabalho duro e graças aos programas sociais, desfruta dessa prosperidade.
E não quer perde-la.
Alguns links que mostram resultados, dificuldades, vitórias e fracassos dos APL nessa região:
Como jornalista-fotógrafa documentarista me interesso por matérias que não conseguem ter espaço na grande midia tão comprometida. Sempre que posso
vou à luta para conseguir boas fotos e depoimentos e batalhar espaço aqui, no exterior, em cadernos, livros, discussões em escolas e universidades. Sempre vale a pena.
Vamos lá, Nair. Os efeitos do Bolsa Família e doa arranjos produtivos locais valem uma bela reportagem.