NOSSO “MOMENTO TORQUEMADA” ENTRE DELAÇÕES E ABRAÇOS

TORQUEMADA E MOROS

Nos últimos dias tenho recebido mensagens convocando para um ato de “abraçar” o Instituto Lula, na sexta-feira, dia 7.

Não vou.

Poderia ir, fossem outras as circunstâncias e outro o modo como foi feita a convocação. Chego lá, mas antes é preciso declarar algumas coisas, para deixar evidente meu ponto de partida.

Antes da fundação do PT, a Ala Vermelha, organização clandestina na qual militava e por conta dessa militância fui preso, torturado e exilado, discutiu amplamente a atitude a tomar diante da proposta que começava a ser formulada, de criação desse novo partido legal. Houve companheiros que defenderam a adesão ao PT como se este fosse o “novo” partido revolucionário, substituindo as formas que já se manifestavam como anacrônicas de atuação partidária e política dentro das quais atuávamos. Dito seja de passagem que companheiros nossos tiveram um papel importantíssimo na articulação do movimento sindical no ABCD, através do “ABCD JORNAL”, que garantiu a comunicação da diretoria do sindicato dos metalúrgicos com os operários, desde antes da greve e da deposição da diretoria pela ditadura.

Junto com muitos outros defendi a criação do PT como partido eleitoral mais capaz de atuar nas novas circunstâncias da redemocratização que o MDB, o saco de gatos que sempre foi e como o PMDB continua sendo. Repito, uma forma mais capaz de atuar eleitoralmente.

Com essa posição, trabalhei para conseguir afiliados para o processo de legalização. O PT conseguiu seu registro ainda nos estertores da ditadura, que não conseguiu impedi-lo porque já estava agonizante.

Trabalhei nesse processo – e nunca ocupei nenhum cargo partidário – consciente de que não se tratava de nenhum partido “novo”. Era uma forma de luta política-eleitoral, dentro do sistema capitalista e sujeito às injunções da política legal. Por isso mesmo, jamais tive ilusões com o PT. E, por isso mesmo, também não tenho do que ficar desiludido.

Nesses anos todos votei principalmente nos candidatos do PT.

Vou continuar votando no PT. Com as exceções que me parecerem corretas.

E isso por que, ainda que não seja, nunca tenha sido e jamais virá a ser um “partido novo”, os governos do PT promoveram transformações sociais cruciais para a melhoria da vida dos trabalhadores; combateram a miséria e a fome e deram novos rumos à política externa. Jogou o jogo da legalidade e dentro do sistema, e ganhou as quatro últimas eleições.

Por isso mesmo, querer roubar essas vitórias eleitorais tem velho registro na América Latina: chama-se GOLPE DE ESTADO.

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“Adeus, Camaradas” – Nostalgia, história e contexto em documentário sobre a dissolução da URSS

“Sonhei que a democracia era compatível com nosso ideal, que as pessoas optariam pelo socialismo se tivessem escolha. Mas não foi assim. Para mim, isso foi uma tragédia tão grande, que parei de pensar nisso. Mesmo que depois alguns se arrependessem, em 1991 as pessoas rejeitaram nosso socialismo. Fazendo isso, se puseram contra sua educação, seus hábitos, seus valores, suas lembranças, tudo que gostavam. Permaneciam soviéticos e socialistas na alma, mas não suportavam mais que lhes mentissem e enganassem. O ponto de partida de nossa aventura foi a fé em um ideal de fraternidade e justiça. No caminho, cada um de nós evoluiu. Quanto a mim, a coisa mais importante e dolorosa que aprendi, é que não se pode impor um ideal, por mais nobre que seja.

Por quê?

Porque afinal nenhum ideal pode prevalecer sobre a liberdade”.

Andrei Nekrasov, cineasta (russo? Ex-soviético? Franco-soviético?) no final de seu documentário Adieu, Camarades!, produzido pelo canal europeu Arte e lançado no Brasil pela Versátil.

adeus, camaradas O documentário fez-me lembrar muito dos anos de militância, entre as décadas de 60 e 80, por isso mesmo provocou uma certa estranheza, sobre a qual refleti depois.

A chave, realmente, é que Nekrasov é russo, e estrutura o documentário a partir de sua experiência, de sua vida como russo na União Soviética. Para ele, inculcado desde a infância, sua vida era a vida no socialismo. Socialismo, ponto parágrafo.

Quanto isso era distante de nós, que militávamos contra a ditadura e em busca da construção de uma sociedade socialista. Para a grande maioria dentre nós, o que havia na União Soviética – e no Leste europeu – era uma “experiência” de socialismo real. E muito problemática.

Havíamos passado, em 1964, pelo rotundo fracasso do PCB, cujas táticas e estratégia não conseguiram dar um mínimo de resposta à ação dos golpistas. O “esquema militar” do general Assis Brasil – chefe do Gabinete Militar do Jango – era nada mais que vento quente, arroto ilusório. E mesmo os que se colocavam à esquerda, como o PCdoB e as Ligas Camponesas do Julião, estavam no fundo atrelados às ilusões do PCB e não houve nenhuma resistência efetiva ao golpe.

Naquela época também se cristalizava a chamada ruptura sino-soviética, e Cuba já era o que era: por um lado tentando apoiar guerrilhas e guerras de libertação nacional na África e na América Latina (via Che), e ao mesmo tempo desesperada para escapar do sufoco do bloqueio, ora com os mirabolantes planos da safra de dez milhões de toneladas, ora com a busca de qualquer apoio que pintasse no horizonte para não cair totalmente na dependência da União Soviética. A experiência da crise dos mísseis já havia ensinado os cubanos sobre os alcances e os interesses do apoio soviético à ilha. E a guerra do Vietnã – com as guerrilhas paralelas no Camboja e no Laos – acrescentavam outros ingredientes à salada.

Todo o processo descrito no documentário de Nekrasov era visto por aqui dentro desse nosso contexto. Foi vivido por nós dentro desse contexto. Salvo para os militantes do partidão, a União Soviética não era “a” experiência do socialismo. Era o dito “socialismo real”, problemático e, se não destinado ao fracasso, certamente muito longe do imaginado. Ainda que a Revolução de Outubro fosse unanimemente admirada por todos, a experiência do stalinismo já era evidente, embora houvesse também rejeição ao discurso anticomunista das bailarinas que fugiam e – mesmo com espanto – às posições de um Soljenítsin.

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A “CONFISSÃO PREMIADA” DO DELEGADO DAIELLO

O Delegado Leandro Daiello, Diretor-geral da Polícia Federal, deu entrevista às jornalistas Eliane Cantanhêde e Andreza Matais, publicada no domingo, dia 5 de julho, na página 6 do provecto matutino paulistano.

A manchete, com cara de catilinária, reza que “Lava Jato prossegue, doa a quem doer”, e no lead da matéria a notória Eliane e sua assistente declaram que Daielo “saiu do quase anonimato e disse ao Estado que, mesmo que as as investigações cheguem perto da presidente Dilma Rousseff, do ex-presidente Lula e de suas campanhas, isso não muda nada na Lava Jato e ninguém estará livre de ser investigado. ‘Nós investigamos fatos, não pessoas. Aonde os fatos vão chegar é consequência da investigação, doa a quem doer’”.

Ora, por quem sois, delegado Daiello. Que as investigações devem chegar até o final é algo que já foi dito muito mais vezes que as três evangélicas vezes que sua excelência afirmou na entrevista. E dito precisamente pelo ex-presidente Lula e a presidenta Dilma.

Aliás, os dois mandatários fazem questão, sempre, de afirmar que nunca a PF teve tanta autonomia para investigar quanto agora. Ao contrário do mandarinato tucano quando, junto com o Engavetador Geral da República, tudo era arquivado.

Isso tudo deu um tom bem estranho à entrevista do delegado. Para mim, foi uma “confissão premiada”, uma tentativa de justificar não sei o quê para não sei quem. E contando com a preciosa ajuda das jornalistas, que simplesmente deixaram de fazer várias perguntas fundamentais, que obrigatoriamente deveriam ser feitas quando o “quase anônimo” resolveu abrir o bico. E que também se esquecem de fazer a seu superior, o sofrido dr. Cardozo, nosso atual Ministro da Justiça.

Como nas famosas “delações premiadas”, o prisioneiro fala o que seus captores querem ouvir. E tem sempre uma memória altamente seletiva. O tal Yousseff (que já foi preso antes e saiu graças a uma dessas delações, na qual se esqueceu de contar um monte de coisas), volta e meia “se lembra” de mais algum detalhe.

Pois bem, o delegado Daiello foi falando sobre o que lhe perguntaram. Além das evasivas contumazes, obviamente não falou sobre o que não foi perguntado. Por isso digo que a entrevista foi uma “confissão premiada”.

Vejamos alguns detalhes.

“A PF tem uma grampolândia?”, perguntaram. Ele respondeu: “Os equipamentos podem ser auditados para saber quem usou, no que usou. A PF não é uma grampolândia. Não chega a 1% o número de investigações com monitoramento telefônico. Na Acrônimo (que investiga o governador de Minas, Fernando Pimentel) não teve, por exemplo”.

O que não foi perguntado: Quem audita? “Quis custodiet ipsos custodes?”, ou “Quem vigia os vigilantes?”, se perguntava Juvenal, o satírico. Ora, a Corregedoria da própria PF, responde o delegado. Ou seja, a corporação, interna corporis, vigia a si mesma. Para mim, não vale.

A mesma tangente é usada pelo delegado quando gentilmente perguntado sobre os vazamentos selecionados: “Toda e qualquer conduta duvidosa é apurada imediatamente pela Corregedoria”.

Alguém por aí já viu alguma resultado de apuração das várias denúncias e reclamações sobre os sucessivos vazamentos de depoimentos da PF? Vazamentos que, curiosamente, saem na medida para que a Veja publique na sexta-feira o que foi colhido na quinta-feira à noite? Até hoje não vi nada disso.

No entanto, quando se reclama que a PF está indisciplinada e sem controle, o que está em jogo é precisamente isso: escutas e vazamentos divulgados de modo selecionado, em processos sob segredo de justiça e sempre com alvos muito bem escolhidos.

O delegado Daiello diz que “a PF é controlada pela lei”. Ora, por quem sois, doutor Daiello? “A lei” é uma entidade que vigia os policiais?

Ah, mas não é apenas a lei. “Os fatos”, “aonde os fatos vão chegar é consequência da investigação, doa a quem doer”, repete o chefão da PF.

Sou um leitor atento de romances policiais. Um dos truques mais comuns dos policiais corruptos é seguir os fatos – sempre bem selecionados entre a miríade de “fatos” disponíveis diante do investigador. O tira esperto sabe muito bem que fatos podem levar à condenação de inocentes, ou “os fatos” podem simplesmente levar a becos sem saída.

Se o delegado Daiello fosse um jovenzinho inexperiente, eu poderia dizer que se trata de um ingênuo iludido por uma pseudo percepção da realidade. Como ele já é aquilo que podemos classificar de rodado e experiente, o único comentário pertinente é: o cara tá querendo gozar com a minha cara.

Lá em outro momento ele cita mais uma versão do velho truísmo: siga o dinheiro. “O foco é descapitalizar as organizações criminosas, porque sem dinheiro elas se enfraquecem e, asfixiadas, também não tem como corromper servidores e entes públicos. Por isso, várias operações que cresceram começaram com a investigação de doleiros. É aí que está o dinheiro”.

Legal, o delegado Daiello já julgou e condenou os manipuladores de grana. Ele até fala que conversa sempre com o Ministro sobre “assuntos correlatos à PF, fronteira, tráfico, equipamentos novos…”

É curioso, mas até hoje não vi a PF “ir atrás do dinheiro” dos financiadores do tráfico, do contrabando de armas. As prisões que foram feitas nessa área resultaram sempre da cooperação com outras polícias (mafiosos, cartéis colombianos de drogas, etc.). E não geraram nenhuma investigação adicional. Por aqui mesmo o que vemos é a brincadeira de apreensão das drogas, muito raramente de armas, mas nada de ir atrás de quem financia tudo isso.

É o caso, para lembrar, do helicóptero dos Perrela e sua meia tonelada de cocaína. Nesse caso – e sabe-se lá em quantos outros mais – os fatos, literalmente, viraram pó.

Mas nossas ínclitas jornalistas nem se preocuparam em perguntar sobre esses pequenos detalhes. Quando ele mencionou os nomes mágicos de Lula e Dilma… Os objetivos da “entrevista” estavam atingidos e o resto era detalhe. E quando ele jogou o governdor Pimentel no meio, então, foi a sopa no mel. Logo o cara que aporrinha a administração do queridinho presidente do PSDB. Que audácia desses petistas!

Como disse antes, existem fatos e fatos. Alguns são selecionados, outros convenientemente transferidos para o âmbito do genérico. E quando um par de jornalistas, supostamente experientes, deixa passar tudo isso, é inevitável pensar: elas perguntaram o que haviam combinado com o delegado Daiello, o ex-quase anônimo, sobre que fatos iriam conversar.

Um papo defensivo, uma verdadeira “confissão premiada”, preventiva e manipuladora. Que não esclareceu nada de nada.

O Daiello bem que podia continuar anônimo a aprender a fazer seu trabalho com mais equanimidade. Mas a vaidade…

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QUANDO A CANETA NÃO RESOLVE…

Se vis pacem, para bellum. O provérbio romano do Século IV anda bem atual. Reclamamos, nos indignamos diante das telas dos computadores, e os fascistas ficam cada vez mais audaciosos.

Olhem só a coluna do Bessa desta semana.

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– Ele não assina nem que a vaca tussa – disse a primeira.

– Só assina se for pressionado – falou a segunda.

Sei que as duas falam pelos cotovelos, mas nunca tive a sorte de conversar com elas. Quando a primeira, que é conciliadora, sofre uma derrota, cede o lugar para a segunda, que não rejeita briga. Foi o historiador Neimar Machado de Sousa, professor da Universidade Federal da Grande Dourados, que encontrou as duas numa sala do sexto andar do Ministério da Educação em Brasília e, finalmente, conseguiu, entrevistá-las.

Neimar pode formular perguntas. Doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos e mestre em história regional do Mato Grosso do Sul, ele é “rato de arquivo”. Andou xeretando documentação do SPI – Serviço de Proteção aos Índios em projeto com o Museu do Índio para catalogar, divulgar e colocar a documentação acessível aos índios e aos pesquisadores. Andou pelos arquivos do Paraguai e participou da criação do Centro de Referência Virtual da Memória e do Patrimônio Cultural Guarani e Kaiowá.
A documentação encontrada nos arquivos dá conta da presença dos índios na região, da invasão dos seus territórios e do conflito pela terra, além da participação deles, já despossuídos do seu chão, nos empreendimentos locais como a exploração da erva-mate e a formação de pastagens em fazendas. O historiador publicou livros e artigos sobre a catequese jesuítica e sobre a construção colonial da fome entre os Guarani. Por isso, talvez seja a pessoa mais indicada para realizar as entrevistas que fez, num momento em que se acirra o conflito agrário entre índios e fazendeiros.

Os conflitos
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A origem do conflito reside basicamente no fato de que em passado recente os índios foram expulsos de suas terras, algumas delas vendidas pelo próprio Estado, que agora propõe, através do Ministério da Justiça, indenizar os fazendeiros para que se retirem do território indígena. Os fazendeiros, que estavam negociando a saída, mudaram de ideia diante da possibilidade do Congresso Nacional aprovar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 215) que favorece seus interesses.

Foi nesse contexto que Neimar Machado de Sousa realizou as entrevistas, cujo texto intitulado A CANETA E A BORDUNA reproduzo aqui, aproveitando também para piratear a foto.

“Representantes indígenas de vários estados juntaram-se a uma delegação de professores e caciques das etnias Guarani, Kaiowá e Terena do Mato Grosso do Sul e partiram para Brasília, onde durante dois dias visitaram alguns órgãos do governo federal. Uma pergunta que se fizeram várias vezes foi: o que nos trouxe aqui?

Durante dois dias acompanhei, como observador, esse grupo e procurei ler-escutar os seus textos-falas para encontrar uma resposta. Ouvi muitas explicações. Uma delas foi escrita pelo cacique Jorge Gomes, da aldeia Pirakuá, em frente á Advocacia Geral da União:

– Nossos direitos não tem partido – conclamou os aliados do alto de sua sabedoria. Outra resposta foi verbalizada pelo índio Cretã Kaingang, do Paraná:

– Meu pai foi morto, lutando pelas terras usurpadas, sem nenhuma providência, por mais de sessenta anos. Eu era apenas um garoto de oito anos de idade”. Já a professora Teodora de Souza explicou a Paulo Gabriel Nacif (SECADI-MEC) e ao representante da Secretaria Geral da Presidência da República o que entendia por pátria educadora:

– Uma nação que todos, independentes de sua etnia, tenham acesso justo, gratuito, aos bens culturais. Uma nação em que os saberes não sejam privilégios de uma pequena elite.

11255464_851949004841915_948293847_oDe todas as respostas, a mais contundente foi escrita em uma fotografia, em cuja legenda eu escreveria: a caneta e a borduna. O professor, flagrado pelo fotógrafo, coordena uma licenciatura indígena na cidade de Aquidauana – MS e a borduna, à sua frente, pertence ao cacique Jorge Gomes, da etnia kaiowá. Intrigou-me como os dois objetos foram se encontrar no sexto andar do Ministério Educação, em Brasília – DF. Fui entrevistar os objetos em segredo.

A borduna, um pouco ríspida, contou-me muitas aventuras contra inimigos ferozes de outras tribos, abatidos em guerras imemoriais. Falou sobre sua participação na vingança dos parentes devorados por felinos-homens, predadores de índios, chamados pelos Guarani de ava poro’ú. Os cronistas coloniais Hans Staden, Jean de Léry e o sociólogo Florestan Fernandes ajudaram-me na investigação.

Entrevistar a caneta foi bem mais fácil, pois ela foi bastante eloquente. Contou-me que tem andado em muitos gabinetes de Brasília. Em alguns mais ausentes. Portas fechadas. Nas aldeias, disse-me, aprendemos, nos últimos anos a escrever palavras nas línguas maternas dos povos indígenas;. Falou-me que ajudou muitos professores-pesquisadores a registrar histórias de anciãos que não conseguem esquecer traumas pelas remoções de aldeias inteiras, quando eram também garotos, contra a própria vontade, em caminhões de transportar gado, sob a mira cuidadosa de “seguranças” armados e impedidos por anos de retornar ao local onde foi enterrado seu ponchito kuê, o cordão umbilical.

Já no final da entrevista, o sábio objeto, bem mais à vontade, confidenciou-me que sua maior frustração na vida foi não conseguir colaborar, não por falta de vontade, mas por omissão de algumas autoridades, a rabiscar seu maior sonho: a assinatura da homologação das terras indígenas, que, segunda ela, está escondida numa gaveta do Ministro da Justiça, em Brasília. Diante de tantos relatos, compreendi o que trouxe estes professores e líderes indígenas à Brasília. Vieram ensinar ao governo que a pátria educadora é a irmã gêmea da pátria de direitos. Uma não vive sem a outra”.

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ORATÓRIA, DISCURSOS E IGNORÂNCIA

Lembro que em 2009 fui à Conferência Nacional de Cultura, em Brasília. No encerramento, o Lula discursou e depois falou a Dilma, ainda não candidata oficial mas já “ungida” pelo Lula. No discurso ela danou de chamar o público (todos presentes na Conferência) de “Congressistas”. Até que o Lula não guentou mais e interrompeu: “Dilminha, eles são delegados. Os congressistas estão lá no Congresso”.

Quando contei a história em casa, comentei: “Vai ser dureza”.

De fato, a oratória não é uma das virtudes da Presidenta, e já fizeram muitas piadas com isso.

Mas, na semana passada, ela acertou, ao louvar a mandioca. Nem é preciso ser antropólogo. Alguém que seja relativamente informado sabe que as Américas foram berço de duas grandes culturas alimentares: a do milho e a da mandioca. Isso sem falar da batata, que já salvou a fome da Europa no século XIX.

Assim que foi de uma estupidez e ignorância atrozes as críticas que fizeram à Dilma pelo discurso na abertura dos jogos indígenas.

O Bessa, que sabe contar histórias melhor que eu, tem a palavra.

(Mas também ela podia ter passado sem a “mulher sapiens”. Essa foi mesmo bola fora.
Capturar

dilma amndioca

“Dona Maria chegou, chegou com a mandioca
Para fazer a farinha, farinha de tapioca”
(Dona Maria, carimbó do Pinduca)

– “Então, aqui, hoje, eu estou saudando a mandioca, uma das maiores conquistas do Brasil”.

A frase da presidente Dilma Rousseff, que discursou de improviso no lançamento dos I Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, em Brasília, na terça-feira (23/06), provocou enxurradas de gozação na mídia e nas redes sociais. O colunista José Simão da Folha de SP, que tem liberdade para rir de Deus e do mundo, especialmente do poder – o que é saudável – reclamou que “Dilma saúda a mandioca, mas só fabrica pepino”. Para ele, a Mãe do PAC virou a Mãe Dioca.

Mas a frase virou também motivo de piadinhas obtusas de quem não tem liberdade para rir. É o caso do deputado da bancada ruralista, Nilson Aparecido Leitão (PSDB-MT), que criou tumulto no plenário da Câmara, na quinta-feira, quando entre outras coisas impublicáveis declarou na tribuna:

– “Dilma está enfiando uma mandioca na população do Brasil com o fim da desoneração da folha de pagamentos”.

– “Olha o baixo nível” – aparteou a deputada Jandira Feghali (PCdoB). No microfone, foi pedida a retirada das palavras de baixo calão dos registros oficiais. Chico Alencar (PSOL) concordou: “Nós criticamos esse governo desastroso, mas é preciso manter um patamar civilizatório para fazer críticas”. Nilson, que é muito mais leitão do que aparecido, descambou para ofensas e insultos com tom raivoso que contaminou a mídia e as redes sociais.

Farinha pouca

Pobre patriazinha tão pobrinha, como cantou o poetinha. Pobre país (des) governado por lambanceiros, cujos líderes despreparados são do naipe de Sibá Machado (PT-AC) e José Guimarães (PT-CE), que enfrentam uma oposição formada por leitões, aparecidos, aécios, caiados, agripinos, cunhas et caterva. Um lado não governa, o outro não sabe criticar nem cobrar, não consegue se articular como alternativa de poder. Afinal, o que foi que Dilma disse para fazerem tanta farofa com tão pouca farinha? Vejamos o contexto, que é o que dá significado ao que falamos.

Na cerimônia de abertura do evento, ocorreram danças rituais indígenas. Dilma, depois de benzida por um pajé, discursou: “Nenhuma civilização nasceu sem ter acesso a uma forma básica de alimentação e aqui nós temos uma, como também os índios têm a deles”. Foi aí que citou a mandioca, destacando os saberes dos índios na sua produção e “a capacidade de ter na natureza não aquela a quem se subjuga e explora, mas uma relação fraterna de quem sabe que é dessa relação que nasce nossa sobrevivência”.

– Dilma é a nefelibata da mandioca – berrou Reinaldo Azevedo em sua coluna do GLOBO. Com uma ignorância supina sobre o tema, arrotou seus preconceitos, querendo ser engraçado: “Um índio que estivesse com a cara cheia de cauim, a bebida de mandioca fermentada que deixava os índios doidões, não teria produzido nada melhor”.

Afinal, de quê e de quem estão rindo a oposição e seus escribas quando Dilma reconhece a mandioca como “uma das maiores conquistas do Brasil”? Embora eu preferisse que ela reconhecesse as terras indígenas, admito que no que ao aipim se refere, a presidente tem razão.

Aipim domesticado

mandio Encharcado de leituras, dei em 1983 uma aula de História Indígena na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). O tema: a mandioca domesticada pelos índios por volta de 7.000 a.C. segundo o arqueólogo Donald Lathrap que fala em uma “civilização da mandioca”. Durante milênios, através de experimentos genéticos, os índios diversificaram a espécie. Só na região do Uapés (AM), entre os Tukano, a antropóloga Janete Chernella (1986) identificou 137 cultivares diferentes, algumas ignoradas pelas universidades, diz o agrônomo Pieter Van der Veld.

Na aula, falei sobre os saberes relacionados à preservação, controle e técnicas de cultivo e extração do veneno da mandioca brava que vêm sendo transmitidos eficazmente pelos horticultores indígenas através da tradição oral. Informei que a mandioca, junto com o milho e o arroz, é uma grande fonte de carboidratos nos trópicos. Até ai, tudo bem. Mas quando comecei a descrever como se produzia a farinha, um aluno me interrompeu:

– Desculpa, professor, mas não é bem assim!

Respondi que minha aula se apoiava em livros – citei alguns – lidos durante o curso de doutorado na França e perguntei em qual bibliografia ele se baseava.

– Não é em livro não. Durante muitos anos, eu fabriquei farinha no Distrito de Pedras, município de Barreirinha, antes de vir pra Manaus – ele disse.

Entreguei-lhe imediatamente o giz, trocamos de lugar e assisti uma senhora aula. No final, aplaudido pelos colegas, ele disse que em sua escolaridade tardia essa tinha sido a única vez em que sua experiência e os conhecimentos daí decorrentes foram valorizados. É que a escola ignora tais saberes e acaba formatando leitões, aparecidos e nefelibatas como Reinaldo Azevedo, que muito ganhariam se tivessem sido alfabetizados por dona Filoca, hoje nome do Posto de Saúde em Pedras.

farinha Essa ignorância pode levar à morte como ocorreu em abril de 1985 com uma criança na bairro Vila Nova, na periferia de Porto Alegre, intoxicada com mais quinze pessoas por haverem comido mandioca furtada de uma horta. O então secretário de Saúde, Germano Bonow, informou que “todas as semanas há casos de intoxicação provocada pela ingestão de mandioca, por pessoas incapazes de distingui-la do aipim”.
Pensamento selvagem
Esse episódio evidencia a quebra de elos na cadeia de transmissão oral e revela como, em consequência, a sociedade brasileira deixou de se apropriar de um saber milenar, útil para a sua sobrevivência, sem que a escrita substituísse essas funções para amplos setores da sociedade nacional. Mas a pedagogia da oralidade continua funcionando no interior das sociedades indígenas.

Já a apropriação do saber indígena pela atual sociedade brasileira tem sido obstaculizada pela ignorância, o despreparo e até mesmo o desprezo mantido em relação às línguas e cultura indígenas. O preconceito etnocêntrico não nos tem permitido usufruir desse legado cultural acumulado durante milênios e acabou intoxicando leitões e aparecidos.

Lévi-Strauss em O Pensamento Selvagem chama a atenção para o fato de que muitos erros teriam sido evitados se o colonizador tivesse confiado nas taxonomias indígenas em lugar de improvisar outras não tão adequadas. O riso boçal e raivoso é, portanto, fruto da ignorância que não ajuda a conhecer o país e a melhorar as condições de vida de quem nele vive. L.F. Veríssimo faz uma distinção entre, de um lado “um antipetismo justificável dado os desmandos do próprio PT” e de outro, “um ódio que ultrapassa a razão” e que “está no DNA da classe dominante brasileira”.

Na tentativa de entender os leitões aparecidos que reproduzem no cenário político a metodologia discursiva do embate Adriana Esteves x Glória Pires na telenovela Babilônia, deixo duas questões para o leitor meditar:

1. A mídia e frequentadores das redes sociais que debocharam de Dilma, fariam o mesmo se Aécio Neves fosse o autor da apologia da mandioca? Tais críticos são livres para gozar as presepadas de Aécio Neves, construtor de aeroportos e fiscal do governo venezuelano?

2. A própria Dilma seria insultada se em discurso no congresso da Confederação Nacional da Agricultura, tendo ao lado sua ministra Kátia Abreu, substituísse a palavra mandioca por soja ou por trigo plantados pelo agronegócio, considerando-os como uma das maiores conquistas do Brasil?

Nas respostas dadas está a chave para entender porque os leitões não são capazes de cantar o carimbó do Pinduca, nem de preparar, sem se envenenar, uma maniçoba completa com folha de maniva, charque, toucinho, mocotó, costela, paio, chouriço, orelha e rabo de leitão.

P.S. – Referências bibliográficas
Coordenação Berta G. Ribeiro. Vol. 1 – Etnobiologia, Petrópolis. Vozes. 1986. p. 151 a 11. Agência O Estado de São Paulo: “Famílias famintas comem raiz mortal”. A CRÍTICA, Manaus, 26 de abril de 1985.
2. LATHRAP, Donald W.: “O Alto Amazonas”. Southampton: The Camelot Press Ltd. 1970. (Cap. III – “Cultura da Floresta Tropical”).
3. CHERNELLA, Janet M.: “Os cultivares de mandioca na área do Uaupés (Tukano)” in Suma Etnológica Brasileira. Edição atualizada do Handbook of South América Indians. 58.
4. VAN DER VELD, Pieter. Bate-papo na Escola Tuyuka Utapinopona, depois da oficina de formação de agentes agroflorestais indígenas ministrada por Renato Gavazzi que continuou na 1ª Oficina de História Tuyuka. Instituto Socioambiental. Aldeia Poani , Rio Tiquié 2004.
5. PEREIRA, Maria de Meneses. ” Plantas tóxicas: determinação de cianeto em amostras de farinha de mandioca (Manihot esculenta Cranstz) produzidas e/ou comercializadas em Manaus, AM. Dissertação de Mestrado em Química. Universidade Federal do Amazonas. 1997, orientada pelo dr. João Ferreira Galvão.

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A PAULISTA ESTÁ UMA FESTA

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Os ciclistas ocuparam toda a avenida.

Todos os domingos a avenida Paulista é uma festa. A diversidade de tipos e situações é imensa. O desvario da Pauliceia se mostra ali em microcosmo (não tão pequeno, afinal a avenida tem cerca de três quilômetros de extensão. Nos dias de semana passam por ali mais de um milhão de pessoas. Nos domingos, ao contrário do esperado, acredito que o número se mantém. A Av. Paulista é um polo de atrações para os paulistanos.

Temos ali o grande museu, o MASP, além de outras salas que abrigam exposições ou outras ações culturais, como o Itaú Cultural e a sede da FIESP. O Instituto Moreira Salles está construindo uma nova sede na avenida, e o Conjunto Nacional volta e meia apresenta exposições. Temos O número de salas de cinema já passou de vinte (contando com as do Belas Artes, logo na Consolação e os do Espaço Itaú de Cinema, dois quarteirões abaixo na Augusta. E vai aumentar, com novas salas a serem inaugurada no shopping Cidade de S. Paulo.
Neste sim de semana, porém, a coisa ficou ainda mais animada, com a inauguração da ciclovia da Av. Paulista. A obra provocou polêmicas e ainda ontem alguns babacas defensores da “pátria armada” reclamavam no vão do MASP. Coisas da vida.

A inauguração abriu uma nova polêmica, com a intenção, revelada pelo Secretário de Transportes, de fechar a avenida aos domingos para a circulação de carros. O objetivo seria fazer da avenida um “parque paulista” nesse dia. Bom, hoje a avenida foi totalmente ocupada pelos ciclistas e os pedestres continuaram nas calçadas. As fotos mostram um pouco da festa.

O Bradesco mandou os monitores como se fosse ainda uma ciclofaixa domingueira.

O Bradesco mandou os monitores como se fosse ainda uma ciclofaixa domingueira.

Toda a avenida ficou tomada

Toda a avenida ficou tomada

Com os monitores, os ciclistas estavam até educados e respeitavam a faixa de pedestres. Tem que ser assim no diário.

Com os monitores, os ciclistas estavam até educados e respeitavam a faixa de pedestres. Tem que ser assim no diário.

Com a multidão aparece também a fauna querendo faturar um pouco. Haja "criatividade". Vendedores de todos os tipos e um Elvis fazendo karaokê fazem ponto por lá

Com a multidão aparece também a fauna querendo faturar um pouco. Haja “criatividade”. Vendedores de todos os tipos e um Elvis fazendo karaokê fazem ponto por lá

A periferia também quer suas faixas.

A periferia também quer suas faixas.

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Porquoi pas?

Porquoi pas?

Na corrida de São Silvestre vemos mais fantasias.  Essa resolveu usar na inauguração da ciclovia.

Na corrida de São Silvestre vemos mais fantasias. Essa resolveu usar na inauguração da ciclovia.

A paralela na direção da Consolação com trânsito intenso, mas sem engarrafas. Mas aposto que amanhã o Estadúnculo vai publicar uma foto parecida.

A paralela na direção da Consolação com trânsito intenso, mas sem engarrafar. Mas aposto que amanhã o Estadúnculo vai publicar uma foto parecida.

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A INTOLERÂNCIA DE TODOS OS DIAS

Buñuel sou ateu Como fiel devoto de “São” Luís Buñuel, há muitos anos sou ateu.

Mas tive dois tios padres, e um deles, Moisés, além de meu padrinho, foi pessoa muito importante na minha vida. Trabalhava no Recife com D. Hélder e me hospedei várias vezes em sua casa quando ia até lá por conta de trabalho clandestino da organização a que pertencia, na época da ditadura.

Quando morreu, o enterro do tio Moisés foi uma autêntica manifestação popular, com centenas de pessoas desfilando diante de seu caixão, na paróquia da Destilaria, na Zona da Mata de Pernambuco, para onde havia sido exilado pelo arcebispo reaça que sucedeu D. Hélder. E tenho uma irmã freira. Sobra dizer que a família – como a grande maioria das famílias brasileiras, ainda hoje – é de tradição católica.

Desde jovem, entretanto, tive, e tenho amigos protestantes, de várias denominaçôes (felizmente, nenhum desses pentecostalistas), judeus (praticante ou não), budistas, espíritas e, ainda em Manaus, convivíamos com muçulmanos.

Em conversas, e discussões, com esses amigos, no decorrer da vida, a religião que praticam – com maior ou menor fé ou rigor – é um componente das histórias de vida de cada um. Como as convicções políticas, as predileções literárias, musicais e, é claro, as sexuais, de cada um. Tenho até amigos corintianos e palmeirenses… Diferenças, portanto, que são tratadas como tais e, longe de impedir ou dificultar o diálogo, sempre o enriquecem.

O que me irrita e me afasta de algumas pessoas – nenhum dos quais, felizmente, posso chamar de amigo – é precisamente a intolerância e a falta de respeito. E mais, piadas valem, ofensas é que não.

Tudo isso a propósito do último TAQUIPRATI, do meu amigo José Bessa, que vai fundo nas manifestações do capiroto da intolerância que, infelizmente, temos visto prosperar por aqui.

Passemos a voz ao Bessa.
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crianca_pedrada (1) Dizem que domingo passado o Diabo saiu do inferno e foi dar uma voltinha na Vila da Penha, no Rio. Escondeu o rabo preso, vestindo o terno do deputado Eduardo Cunha (PMDB, vixe, vixe). Ocultou o chifre, botando a peruca do pastor Silas Malafaia. A cueca usada era do deputado Marco Feliciano (PSC, vixe, vixe), pastor da Catedral do Avivamento. Assim, disfarçado e endomingado como quem vai à missa, o Capiroto presenciou uma maldade que nem ele tem coragem de praticar: o apedrejamento de uma menina de 11 anos, que saía alegre da festa de candomblé vestida de branco com seu turbante – o ojá – enrolado na cabeça.

“Macumbeira, vai queimar no inferno. Sai Satanás” – gritavam os marmanjos. Na mão esquerda traziam a Bíblia, na direita pedras que quebraram a cabeça de Kayllane Campos, uma criança. Saiu muito sangue, ela desmaiou, enquanto eles berravam: – “Aleluia! Jesus está voltando”, mas quem voltou mesmo foi o “Coisa Ruim”, por não acreditar naquilo que via: seres humanos que eram ainda mais escrotos do que ele. Horrorizado com tanta perversidade, o Capeta se pirulitou de regresso ao seu cafofo, onde está à espera dos apedrejadores. Repetiu-se aquela cena do filme Rashomon de Kurosawa.

Este não foi um fato isolado. O país respira intolerância por todos os poros. O fanatismo, inclusive no campo político, atinge nível tão insuportável que nem o Diabo aguenta e até Deus duvida. Diariamente, em algum lugar do país, pitbulls engravatados agridem religiões afro-brasileiras e profanam a Bíblia que carregam como se fossem tijolo. O registro oficial, que deixa de fora muitas ocorrências não notificadas, apresenta dados alarmantes nos últimos quatro anos. Os crimes foram 15 (2011), 109 (2012), 231 (2013) e 249 (2014), com o Rio em primeiro lugar e o Amazonas em terceiro, numa curva sempre crescente.

Pacto com o Capeta

Nesta estatística não consta o que aconteceu outro dia em Cachambi, bairro do Rio. castelli 2 Uma corja de energúmenos explodiu um morteiro dentro de um templo umbandista, arrombou portas, quebrou imagens, destruiu a casa das almas e vandalizou a casa de Exu. Recentemente mães e filhos de santo foram expulsos dos morros do Rio por militantes pentecostais. Há duas semanas, morreu em Camaçari (BA), Mãe Dedé de Iansã, que não suportou os ataques de membros da igreja evangélica instalada em frente ao terreiro Oyá Denã.

Na última quinta-feira, foi a vez de um templo espírita na Rua Humaitá (RJ) ser apedrejado por três indivíduos com a Bíblia na mão. Quebraram estrela, imagens de Buda e de Nossa Senhora Aparecida. Nem os mortos escapam: no mesmo dia, lá em Uberaba (MG), danificaram o túmulo do médium Chico Xavier. Parece que o cordeiro de Deus não tirou os pecados do mundo, mas tirou a humanidade e a inteligência dos agressores.

Não temos notícias de punição para tais crimes hediondos, embora representantes da Umbanda e do Candomblé tenham pedido ao Ministério Público abertura de inquérito civil para investigar casos de intolerância religiosa, mencionando os “Gladiadores do Altar”, grupo formado por jovens da Igreja Universal (Iurd), que uniformizados como militares, marcham e gritam palavras de ordem como um batalhão do exército.

Mesmo diante do fato de que os agressores são quase sempre pertencentes a igrejas de diferentes denominações evangélicas, o pastor Silas Malafaia, dirigente do Conselho de Ministros Evangélicos do Brasil (CIMEB), exime a instituição de qualquer responsabilidade: “Se um umbandista ataca uma igreja evangélica, não podemos culpar a Umbanda” – ele relativiza. Só que não existe registro de um único caso de ataques a um templo evangélico por umbandistas. Não existe. Nem de discurso contra outras religiões. Os umbandistas, ecumênicos, não acham que a sua é a única fé verdadeira e que as demais são do Cramunhão.

Os donos de Cristo

fanatismo Já o contrário aparece com frequência. A Igreja Universal postou no Youtube vídeos que debocham do Candomblé e da Umbanda. O Ministério Público Federal, invocando a liberdade de crença e de culto garantida pela Constituição de 1988, pediu no ano passado que fossem retirados. No entanto, o juiz Eugênio Rosa de Araújo, da 17ª Vara Federal (RJ), indeferiu, afirmando que “manifestações religiosas afro-brasileiras não podem ser classificadas como religião”, porque – segundo ele – “não possuem um livro sagrado como a Bíblia ou o Alcorão”.

De um lado, o juiz grafocêntrico cartorializou a Bíblia, entendendo que religião é como jogo do bicho: só vale o que está escrito. Para ele, valores, rituais e saberes que circulam no mundo da oralidade não podem aspirar o status de religião oficial. De outro lado, o pastor Malafaia, que segundo a revista Forbes é o terceiro pastor mais rico do Brasil com um patrimônio de 150 milhões de dólares, não assume que as instituições religiosas têm um papel na gestão e no controle da ideologia do seu rebanho, influenciam o comportamento dos fiéis e fornecem, inclusive, as consignas que embora mencionem a Bíblia, usam a metodologia do Capiroto (PSDB, vixe, vixe).

Resta saber as razões de tanto ódio contra quem reza por outra cartilha. Uma pista foi dada por Contardo Calligaris em sua coluna na Folha de SP desta semana: “Em geral, os que transformam a fé em comércio preferem deter o monopólio de seu profeta, de seus dogmas, de suas cerimônias (…) querem ser os únicos donos do Cristo para vendê-lo melhor”.

Talvez a intolerância possa mesmo ser explicada pela lógica do mercado. Certos comerciantes da fé e empresários espertalhões do faith-business buscam atrair adeptos, disputando entre si o dízimo e os recursos do estado com a isenção de impostos e dotações orçamentárias conquistadas pela bancada evangélica no Congresso Nacional. Embora não saiba, a menina apedrejada pagou pelo fato de o candomblé ter crescido 31.3% em dez anos, num período em que a população brasileira aumentou 15.7%. Daí o preconceito e a pedrada que horrorizou o próprio diabo.

O arroz e a flor

A antropóloga Renata Menezes, professora no Museu Nacional e pesquisadora do ISER, latuff_intolerancia_homofobia abre seu artigo Religiões e culturas: o desafio da diferença com o relato de um cara que colocava flores no túmulo da mãe, quando viu um chinês colocar um prato de arroz na lápide ao lado.

– Desculpa, mas o senhor acha mesmo que o seu defunto virá comer o arroz – o cara pergunta.

– Sim, ele costuma vir na hora em que a senhora sua mãe vem cheirar as flores – respondeu o chinês.

Caminhada Contra Intolerância Religiosa Movimenta Centro de Fortaleza. A caminhada se concentrou na Igreja do Carmo, seguindo pelas ruas do Centro até a Praça do Ferreira.

Caminhada Contra Intolerância Religiosa Movimenta Centro de Fortaleza. A caminhada se concentrou na Igreja do Carmo, seguindo pelas ruas do Centro até a Praça do Ferreira.

P.S. O relato da Renata menciona apenas um parente, mas não resisti e meti a mãe no meio. A autora discute a diversidade humana, a forma como os grupos sociais lidam com as diferenças religiosas e o choque cognitivo entre eles. O leitor interessado em aprofundar o debate sobre religião, cultura e sociedade no Brasil, assim como sobre as relações entre umbanda e pentecostalismo, encontra reflexões esclarecedoras nos artigos de Renata de Castro Menezes, entre os quais Aquela que nos junta, aquela que nos separa: reflexões sobre o campo religioso brasileiro atual a partir de Aparecida e no texto de Rubem César Fernandes “Aparecida: nossa rainha, senhora e mãe, saravá”.

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A estupidez nas Américas tem quatro séculos. O consolo é que o bom senso também.

Que a Kátia Abreu tem fobia de índios – motivada por sua sanha latifundiária, é claro – já sabíamos.  Mas que a escola de pensamento que ela fundou – a abreugrafia, de triste fama – já estivesse tão difundida, é phoda constatar.

Ainda mais que a porta-voz da própria é secretária de educação. Desmerece o título e ganha, desde logo, lugar de destaque no panteão das personalidades estúpidas que povoam a pobre Pindorama e que, infelizmente, cresce geometricamente.

Mas deixemos que o Babá, vigilante defensor da causa indígena, conte a história e publique uma entrevista bomba (Bomba! Bomba!) com um frade porreta (o que também é exceção).

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DONA ROSA NEIDE, LAS CASAS E OS ÍNDIOS
José Ribamar Bessa Freire
14/06/2015 – Diário do Amazonas

Bartolomedelascasas neide Esta não é a primeira vez que converso com o bispo de Chiapas (México), frei Bartolomé de Las Casas. Há mais de trinta anos, em 1984, entrevistei-o para o Porantim, jornal editado em Brasília. Naquela ocasião, numa reunião tensa, a antropóloga Berta Ribeiro esfregou a entrevista na cara do Nelson Marabuto, um policial de carreira que nunca tinha visto um índio, mas era o presidente da Funai. Essa entrevista foi publicada em Berlim pela revista Lateinamerika Nachrichten (1985) com o título Indianische Volkerwerden massakriert Interview mit Las Casas.

Como foi possível a entrevista se o frei dominicano nos deixou em 1566, quando morreu aos 92 anos, depois de conviver quase meio século com os índios do México e do Caribe? Encontrei Las Casas na Biblioteca Nacional de Paris, onde está conservada sua obra. Lá, ele permanece vivo. Respondeu à fala preconceituosa da atual secretária de Educação do Mato Grosso, Rosa Neide, e criticou as presepadas de Kátia Abreu, Eduardo Cunha e outros. Essa interlocução só foi possível, porque foi construída uma ponte no tempo entre o séc. XVI, onde reside a ideologia dos brasileiros mencionados, com o séc. XXI, onde reverbera o pensamento de Las Casas, com notável vigência.

A resposta de Las Casas, defensor incondicional dos direitos indígenas, é feita com argumentos que atravessam séculos e dialogam com disciplinas contemporâneas como a antropologia e a etnohistória. LAS CASAS, Bartolomeu de_ ISTORIA ò breuissima relatione DELLA DISTRVTTIONE dell’Indie Occidentali  1 Ela se situa no contexto da luta política, por isso é também apaixonada, carregada de superlativos, de amor aos índios e de crítica implacável aos conquistadores, extensiva ao agronegócio e à bancada ruralista. Ele publicou, entre outras, a Brevíssima relação da destruição das Índias Ocidentais pelos castelhanos e a História das Índias, em cinco tomos. Retirei de seus livros as respostas atualizadas aqui pelas perguntas.

P. – Imagine, padre Las Casas, uma secretária de Educação, que devia zelar pela qualidade do ensino, justifica a nota baixa do Mato Grosso no IDEB, alegando publicamente que é porque os alunos de lá tem “origem indígena e quilombola”. Ela repete, entre outros, o cronista Gonzalo Oviedo, que nunca conversou com os índios, mas sugeriu que eles eram burros e desmemoriados. É isso mesmo?
LC – “Tem-se por notório que todos índios são inteligentíssimos e tem memória imortal, lembrando-se de fatos que ocorreram há muitos anos. Se Oviedo que não conhece nenhuma língua indígena, ainda assim acha que os índios não tem memória, é porque (irônico) isto só pode lhe ter sido inspirado por revelação divina”. (F, t.5,pg.114)
P. – Padre, não quero fazer fofoca não, mas diante da defesa dos índios hoje quando suas terras invadidas pelo agronegócio, a senadora Kátia Abreu, ministra da agricultura, diz que eles são violentos. O Sr. acha que podemos comparar os índios com os jagunços e os pistoleiros do agronegócio e a polícia do Paraná?
LC – “Os índios são humildes, pacientes, pacíficos e quietos. São os povos mais delicados, doces, mansos e ternos que eu vi na minha vida, em toda a face da terra. Nem os filhos de príncipes e senhores, criados entre nós com todo o mimo e delicadeza, são mais delicados que eles”. (A.pg.4-5)
P. – Muitos deputados não pensam assim. Há dois anos, quando os índios ocuparam o plenário da Câmara, parlamentares fugiram em debandada espetacular mostrada pela TV. Um deles, Chiquinho Escórcio (PMDB-MA, vixe, vixe), encagaçado, jurou que os índios eram violentos. Cadê a delicadeza? Exemplifique.
livro-o-paraiso-destruido-frei-bartolomeu-de-las-casas-539101-MLB20271330121_032015-F LC – “Se o índio está dormindo e o outro deve despertá-lo, não o fazabruptamente para não incomodá-lo, mas ficará durante uma hora puxando-o levemente pela camisa ou manta se está vestido. Caso contrário, balança o seu pé suavemente pouco a pouco, acompanhando este movimento com palavras ternas e em voz baixa até despertá-lo, sem que ele sinta”.(F,t.5,pg.114)
P. – No recente conflito entre os Tupiniquim e a fábrica de celulose Aracruz, no Espírito Santo, foi feito campanha contra os índios rotulados de preguiçosos, exatamente como escreveu Oviedo e reforçou dona Rosa Neide.
LC – Quanto a não ser de muito trabalho, nós lhe concedemos com prazer, porque pela sua própria natureza os índios eram delicadíssimos, como filhos de príncipe (…) com muito pouco trabalho conseguiam com grande abundância todas as coisas de que necessitavam. O muito tempo que lhes sobrava, supridas suas necessidades – porque não infernizavam suas almas para acumular riquezas e amealhar fortuna – era ocupar-se com exercícios honestos como brincar (…), bailar, dançar e cantar, recitando todas as suas histórias sobre coisas passadas. A ociosidade de que fala Oviedo não era vício, mas sinal de virtude e de viverem mais de acordo com a razão natural do que viviam os espanhóis (F, t.5, pg.111).
P. Se eu o adicionasse como meu amigo no Facebook, que só será inventado daqui a cinco séculos, o Sr. constataria a onda conservadora nas redes sociais que repete a mesma lenga-lenga de Oviedo sobre a preguiça dos índios.
LC – “Para nós, que queremos entesourar riquezas e amontoar bens temporais, devido à nossa ambição e avidez insaciável, aqueles povos podem ser julgados ociosos, mas não pela razão natural. Eram povos acostumados a trabalhar pouco, mas viviam com abundância de alimentos. Os espanhóis estavam tão ávidos para enriquecer e exigiam-lhes trabalhos intoleráveis, como os das minas de ouro, que são trabalhos infernais. E os índios foram forçados a passar de um extremo ao outro. Qualquer um pode julgar se eles tinham ou não razão de se sentirem explorados, fugindo para os montes. E porque fugiam da vida infernal e desesperada, nasceu e tomaram os espanhóis o princípio para difamá-los como ociosos e preguiçosos” (F.t.3, pg.399).
bartomé texto P. Padre Las Casas, o Sr. tem sorte de não conhecer Eduardo Cunha (PMDB, vixe-vixe) presidente da Câmara de Deputados. Ele quer transferir do Executivo para o Legislativo, ou seja, para a cobiça dos ruralistas, o poder de decidir sobre as terras indígenas, através da Proposta de Emenda Constitucional (PEC-215). Isso torna inviável a demarcação. Sem terra, os índios são explorados. Recentemente, a polícia descobriu 800 índios guarani trabalhando numa empresa de cana-de-açúcar em Mato Grosso do Sul em regime de semiescravidão.
LC – “O diabo não pode inventar nenhuma outra pestilência pior para destruir, consumir, matar e despovoar toda a América. Os espanhóis repartiram os índios aos cristãos como se eles fossem vacas ou cabras (F, t.2.pg.163), como se os índios, animais racionais, fossem alguma madeira que se cortasse das árvores ou manada de ovelhas” (F.t.3,pg.220). Repartiam os índios para trabalhar nos campos de algodão: os homens para semear e lavrar, as mulheres para fiar e tecer, não escapando nem as mulheres grávidas, nem as paridas” (F.t.3,pg.286). E até mesmo as bestas costumam ter um tempinho de liberdade para pastar no campo e os nossos espanhóis nem sequer isto concediam aos índios” (F, t.3, p.78).
P. O cacique kayapó Nhaket Mekrangnotire enfrentou o Cunha, dizendo que ele e a bancada ruralista querem “destruir os índios e vai ter muito sangue correndo”.
LC – “Quem podia contar as fomes e aflições, tratamentos maus e cruéis que não só nas minas, mas em todas as instâncias e onde quer que trabalhavam padeciam os desventurados? (F.t.3, pg.206). (…) Pereceram durante os 46 anos em que estive presente (entre os índios) mais de 15 milhões de almas sem fé e sem sacramento e despovoaram mais de 3 mil léguas de terra (B, pg.59).
P. Em 2008, houve uma polêmica no Brasil quando o STF decidiu pela demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Na época, se discutiu até mesmo o papel histórico do colonizador português. O Sr. tem informações sobre o Brasil?
R. – (Desculpando-se antes por conhecer a conquista do Brasil apenas através de alguns cronistas, entre os quais João de Barros) “Os portugueses queriam que os índios recebessem a fé na porrada (sic), ainda que lhe pesasse a forma como Maomé introduziu no mundo a sua seita… Suspeito que os portugueses, sob o pretexto de dilatar a fé cristã, buscavam despojar o Brasil do ouro, prata e especiarias que tinha e outras riqueza, além de usurpar aos índios seus territórios e sua liberdade como nós, os castelhanos, o fizemos. Os portugueses sempre encontraram gentis milagres para confirmar a doutrina que os missionários haviam pregado: roubá-los, cativá-los, queimá-los e despedaçá-los. Seria bom perguntar se foi por este caminho e com estas ameaças que eles, portugueses foram chamados para a fé” (F,t.2, pg.456).
P. Padre Las Casas, o Sr. vai ser acusado de exagerado e louco por denunciar essas atrocidades… Seus livros não entrarão nas escolas administradas pelas Rosas e pelas Neides.
R. “Isso tudo, quem, daqueles que vão nascer nos próximos séculos, acreditará? Eu mesmo, que escrevo e vi e sei muito mais do que conto, agora me parece que não foi possível, mas já é um fato necessário por nossos grandes pecados e será bom que com o tempo o choremos”. (F,t.3, pg.219). India dando cotoco

P.S. Agradeço a Gleice Antônia de Oliveira pela dica e pela postagem da índia aqui reproduzida.
Obras consultadas escritas por D. Fray Bartolomé de Las Casas:
A) “Brevissima relación de la destruyción de las Indias Occidentales por los Castellanos. Sevilla, 1552, Edição em pergaminho na Biblioteca Nacional de Paris (BNP).
B) Treynta proposiciones pertenecientes al derecho que la iglesia y los Príncipes christianos tienen contra los infieles. Barcelona. 1646. BNP
C) Una disputa entre el Obispo y el Doctor Gines de Sepulveda sobre que el Doctor contenia que las conquistas contra los índios eran lícitas y el Obispo, por el contrário, que eran injustas e iniquas. Barcelona. 1646. BNP
D) Tratado que escrivio por mandado del Consejo Real de las Indias sobre la materia de los índios que se han hecho esclavos por los castellanos. Barcelona. 1646. BNP
E) Remedios que refirio por mandado del Emperador al Ajuntamineto de Prelados que mandó juntar en la Ciudad de Valladolid el año 1542 por la reformación de los índios.
F) Historia de las Indias ahora por primera vez dada a luz por el Marques de Fuensanta del Valle. Madrid. Imprenta de Miguel Ginesta. 1875 (5 tomos)
G) Alguns capítulos de la Apologetica História (tomo V da obra anterior)
H) De las antiguas gentes del Peru. Madrid. Typ Manuel Hernandez. 1892

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BUROCRACIA E FALTA DE BOM SENSO NA ADMINISTRAÇÃO TUCANA DA SAÚDE

Sexta-feira passada tentei, com minha mulher, fazer a vacinação para gripe, parte da Campanha Nacional de vacinação (e que recebe para isso recursos do mal-falado SUS, através do Ministério da Saúde). A USB em que geralmente faço isso, ao lado da Escola de Saúde Pública da USP, na Av. Dr. Arnaldo, estava fechada. Enforcaram o feriado. O posto do Hospital Emílio Ribas também.

Isso já é um absurdo. Qual a razão para “enforcar” uma sexta-feira se não a de justificar preguiça, má administração e falta de controle da Secretaria Estadual de Saúde, com certeza conivente com isso, ao também dar uma injustificada “folga” para seus funcionários.

Convenhamos. Sou totalmente favorável a que os servidores públicos recebam salários dignos e tenham boas condições de trabalho. É uma luta com a qual sou integralmente solidário.

Mas não sou solidário com esse tipo de distorção. Que, aliás, não é a única que acontece no serviço de saúde do Estado de S. Paulo, há vinte anos administrado pela tucanagem, que vive se vangloriando de ter administração “moderna” e voltada para o serviço da população.

Meuzovo!

CAPS - Nos feriados e fins de semanas os pacientes NÃO precisam de atenção psico-social.

CAPS – Nos feriados e fins de semanas os pacientes NÃO precisam de atenção psico-social.

Já citei o fato da CAPS – Centro de Assistência Psico-Social que funciona aqui atrás do MASP, na esquina das ruas Carlos Comenale e Itapeva não funcionar nos fins de semana. De segunda a sexta-feira, os pacientes que se beneficiam do tratamento sem internação (resultado do amplo movimento antimanicomial) vão para lá, são medicados, almoçam e recebem apoio terapêutico e ocupacional.

Mas sábado e domingo são declarados sãos e aptos a dispensar do tratamento.

O resultado, visível, é que os mais pobres, sem ter onde ir, ficam mendigando pelas redondezas, dormindo na porta da fechada CAPS.

Serviço público de qualidade, meuzovo!

Na quarta-feira, dia 10 de junho, fui fazer mais uma tentativa de ser vacinado contra a gripe na UBS da Dr. Arnaldo.

Qual minha surpresa quando o vigilante me informa que todas as quartas feiras a UBS é fechada ao público para “reunião de coordenação”!

Na UBS ao lado da Faculdade de Saúde Pública, toda quarta-feira não se atendem os usuários: estão "coordenando" o não-atendimento.

Na UBS ao lado da Faculdade de Saúde Pública, toda quarta-feira não se atendem os usuários: estão “coordenando” o não-atendimento.

Solto uns berros ali, protestando, e peço desculpas ao vigia. Ele não tem nada com isso e está cumprindo sua função de vigilar, que nem é a de informar os incautos que chegam. Mas o xingamento é escutado por uma funcionária (de jaleco branco, ou seja, médica, enfermeira ou atendente), que deixou de ser coordenada para pitar seu cigarrinho fora do prédio. Consegui vacinar no Emílio Ribas.

Mas essa história de “reunião de coordenação” todas as quartas-feiras (segundo o vigia) merece observações.

Não é preciso haver cursado administração (e, se o chefe da UBS for médico, pode até ter faltado o curso de administração hospitalar ou administração de saúde, se é que as elitistas faculdades de medicina oferecem isso) para saber que as ATIVIDADES MEIO não podem ser pretexto para prejudicar as ATIVIDADES FIM.

Ora, reuniões de coordenação e administração são ATIVIDADES MEIO para que a unidade funcione melhor para cumprir sua ATIVIDADE FIM, que é ATENDER AO PÚBLICO.

Um administrador com meio centímetro de massa cinzenta divide as equipes para fazer reuniões e passar orientações (caso seja imprescindível fazer reuniões para isso, pois muitas vezes basta a supervisão direta), de modo que haja sempre funcionamento da ATIVIDADE FIM.

Se o chefe da tal UBS aproveita todas as quartas-feiras para fazer reuniões tão grandes que prejudicam o atendimento ao público, isso pode ser facilmente diagnosticado:

1) O CHEFE DA USB É UM ADMINISTRADOR INCOMPETENTE, BUROCRATA NO PIOR SENTIDO DA PALAVRA;

2) A SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE DE S. PAULO NÃO TÊM MECANISMOS DE SUPERVISÃO PARA EVITAR IDIOTICES DESSE GÊNERO;

Perdemos a oportunidade de eleger um administrador que já havia provado sua dedicação às questões da saúde pública, voltado para atendimento da população, principalmente dos mais pobres. Em vez de eleger o Alexandre Padilha, os paulistanos deram mais quatro anos para o Picolé de Xuxu da Opus Dei, o tal Alckmin.

E pagamos todos com a educação e a saúde em frangalhos, bebendo esgoto “filtrado” e outros belos exemplos da INCOMPETÊNCIA TUCANA PARA ADMINISTRAR.

 

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Os “índios” do velho continente.

Meu amigo e ex-professor Rodrigo Montoya passou dois meses aqui em S. Paulo, hospedado conosco  enquanto dava um curso para o grupo Diversitas, da USP, coordenado pela prof. Zilda Yokoy.

Rodrigo trabalha em novo livro, no qual retoma temas que lhe são caros, como a questão étnica no Perú, a questão dos estados plurinacionais, que a Bolívia recentemente consagrou em sua nova constituição. Conversamos bastante a respeito durante esse tempo, inclusive sobre as peculiaridades brasileiras e a intersecção das questões raça e classe nessas sociedades.

A formação dos estados nacionais, façanha das nascentes burguesias do final da Idade Média e do Renascimento, está em crise também em seu berço original, a Europa. Principalmente na Espanha, onde as autonomias da Catalunha, Valência, País Basco e Galícia contestam com cada vez maior veemência o conceito de estado nacional espanhol (e o municipalismo extremado que ganhou muitos pontos nas últimas eleições reforça essa tendência). Além da Espanha, a Bélgica, onde o impasse entre valões e flamengos resulta em enormes dificuldades para a formação de um governo nacional, e mais recentemente no Reino Unido, onde a Escócia retomou seu ímpeto independentista, o questionamento dos estados nacionais (um país, uma bandeira, um hino e um idioma – antes, também de forma candente, também uma religião) está cada vez mais presente.

Na França, um dos primeiros a alcançar tal condição, as reivindicações dos bretões, normandos, bascos e occitanos pareciam relegadas a um segundo plano, essas reivindicações voltam a agitar o panorama político, ainda que sem a envergadura do que acontece na Espanha. Mesmo a Alemanha (que foi um dos últimos a se conformar como estado-nação, já no século XIX), o que parecia ser uma tendência de reforço, com a anexação (chamada de reunificação) da RDA pela RFA continua mostrando sinais de atrito.

Na América Latina o problema é particularmente grave nos países nos quais, antes da chegada dos conquistadores europeus, existiam culturas muito fortes, já bem prestes a se tornarem estados nacionais, particularmente nos Andes, com o Império Inca. Na Mesoamérica e no México, por sua vez, a crise profunda que se abatia sobre os astecas não eliminou o problema. Os zapatistas mostram que o problema continua presente, embora o estado nacional mexicano seja bem forte.

Na Bolívia o questionamento do estado-nação unificado vem sendo tratado de forma bem mais criativa, com o reconhecimento explícito da plurinacionalidade no estado boliviano. E no Perú, como Rodrigo Montoya vem mostrando, a crise é longa e profunda, e com muitas implicações, como também no Equador.

Em seu último post no Taquiprati, meu amigo Bessa retoma, como sempre de modo alegre (que recobre de humor questões seríssimas), esse problema. Mencionado a questão occitana, não deixa de lembrar o estatus de dominadas que sofrem nossas populações indígenas.

bessa1

 

A primeira vez que ouvi falar na língua occitana foi em 1972 quando estava exilado em Paris. Uma amiga francesa, Paulette Delpont, me contou que era nessa lingua que seu avô ensinava os mais jovens a fabricar aqueles foles antigos que servem para reavivar o fogo na lareira. O vovô morreu no Roussillon, sul da França, onde exercia seu oficio de artesão. Mas a língua d´oc resiste e ainda hoje há quem arrisque a vida por ela. Para defendê-la, o fundador do jornal occitano La Setmana, David Grosclaude, iniciou no final de maio greve de fome contra a política do estado francês que discrimina uma língua tão próxima ao português.

Reside justamente na afinidade das duas línguas, que são as “últimas flores do Lácio”, o motivo do encanto que o occitano desperta em nós, falantes de português. Se o vovô do Roussillon me perguntasse: – Que fas dins la vida? – eu responderia: – Soi estudiant. É que para falar occitano – eu brincava – basta suprimir a vogal final das palavras em português: degra(u), mai(s), plan(o), catolic(o) sac(o), vent(o), pont(e) e por aí vai. Qualquer criança brasileira entende o chamado de mãe occitana: – mon filh – mesmo que não seja a “voz materna” no “rude e doloroso idioma” cantado por Camões.

Língua d´Oc

Afinal, que língua é essa, cujo falante tem de fechar a boca para reivindicar o direito de usá-la? mapa 6 O occitano, conhecido como provençal ou língua d´oc é uma língua neolatina falada na Occitânia, uma nação sem estado, no sul da França, que inclui territórios do Languedoc-Roussillon, Provença, Gasconha, Auvérnia, Limusine e Definado, além de alguns vales alpinos da Itália e o Vale do Aran, na Catalunha. Lá se encontram sítios arqueológicos e históricos, ruínas romanas, coliseus, aquedutos, anfiteatros, mosteiros, igrejas, abadias, além do patrimônio mais importante que documentou tudo a seu redor: a língua d´oc.

No século IX – garantem os estudiosos – surgem os primeiros documentos escritos em occitano com o objetivo de converter seus falantes ao catolicismo, qualquer semelhança com o que fizeram os missionários na América com os índios não é mera coincidência. Eram traduções do latim de hinos, poesias, contos religiosos, biografias de santos. Conserva-se ainda hoje o manuscrito com a versão feita no séc. XI do Evangelho de São João, além de peças de teatro e da poesia dos trovadores do sec. XII e da literatura jurídica, filológica e científica a partir dos séculos XIV e XV.

Mas o uso oficial do occitano parecia ter seus dias contados. Com a Revolução Francesa, o Abbé Grégoire, padre e político, traçou um mapa dos costumes e das línguas faladas na França, a partir de questionários aplicados em 1790, que confirmaram o que já constava na Enciclopédia publicada alguns anos antes: o francês falado sobretudo em Paris era considerado língua estrangeira no interior, onde predominavam línguas vernaculares denominadas depreciativamente de patuá.

Definido pela Enciclopédia como “linguagem corrompida falada em quase todas as províncias”, o patuá, na realidade, era “o nome dado às línguas dos povos vencidos” como mais tarde advertiria Jean Jaurés. Foi com esse discurso de intolerância em relação a essas línguas que o abade Grégoire fundamentou a elaboração do “Relatório sobre a necessidade e os meios de erradicar o patuá e universalizar o uso da língua francesa”.

A compreensão de que as línguas constituem um dos alicerces de ordenamento social nas práticas administrativas do Estado justificou a imposição do idioma francês como um dos fundamentos ideológicos da unidade nacional com a consequente intransigência na repressão às demais línguas.

O selvagem da França

Parler francais propre O projeto político defendido pelo abade Grégoire queria extinguir as línguas usadas no meio rural, incluindo aquelas faladas pelos escravos por cuja liberdade – é verdade – ele lutou, desde que os libertos falassem francês, que para ele era “a língua da liberdade”. Como deputado na Constituinte, declarou que essa era a melhor forma de eliminar as superstições – assim ele chamava os conhecimentos tradicionais transmitidos oralmente em línguas vernáculas. Sua proposta de “criar um povo” e de “dissolver todos os cidadãos na massa nacional” passava pela universalização da língua francesa, estabelecendo a relação entre cidadania e a língua oficial. Essa foi a política de línguas do Estado francês.

Uma estátua do Abbé Grégoire foi inaugurada recentemente no coração de Montpellier em comemoração à libertação dos escravos durante a Revolução Francesa, o que é uma afronta equivalente a erguer um monumento aos bandeirantes ou uma estátua de Cabral dentro de uma aldeia indígena, conforme observação de Mathias Gibert, que discute o papel intolerante do abade no artigo Uma França Selvagem: sobre a ‘colonização interna’.

A consequência desse modelo político que interfere no destino das línguas regionais é contestada pelo bispo de Burgos, Pedro Luis Blanco, na sua “Resposta Pacífica de un Español”, de 1798. “Nos tratan como índios” – escreveu. O bispo reconhecia que o occitano e outras línguas minorizadas recebiam o tratamento compatível com o modelo colonial hispânico que defendia a erradicação da diversidade linguística.

Embora a administração colonial, por necessidade, tivesse usado as línguas gerais indígenas, o que significou a extinção das línguas minoritárias, as constituintes das repúblicas latinoamericanas retomaram o modelo francês, associando a cidadania ao domínio da língua de Estado.

Efetivamente, na França, os povos de línguas minorizadas foram submetidos a um processo de “colonização interna”, estudado pelo linguista e historiador Robert Lafont, professor da Universidade de Montpellier, especialista em literatura occitana. Para ele, as minorias que vivem em território controlado pelo estado francês foram colonizadas, seguindo o modelo do colonialismo externo. “O camponês francês é o selvagem do interior”, para usar expressão de Michel de Certeau citada por Mathias Gibert.

Lenga d´amor

langedoc Apesar disso, a língua e a cultura da Occitânia conquistaram um lugar na literatura e no cinema. História de Adrien de Jean-Pierre Denis, que tive a sorte de ver em 1981, é todo falado na língua d´Oc e legendado em francês. Conta a história de um camponês no início do séc. XX, as migrações, o êxodo rural, a cidade, a greve dos ferroviários. A escolha da língua foi determinada – segundo o diretor – como forma de registrar que em 1905 ela era falada pelos camponenses no cotidiano do campo e dos povoados.

A trajetória da língua e da cultura occitana pode ser vista também no documentário Lenga d´amor (2013), todo ele falado em língua d´Oc, escrito e dirigido por Patrick Lavaud. Ele registra as narrativas orais, o conto, a criação literária, a toponímia, o bilinguismo e discute o papel do ensino da língua e de seu futuro, a partir de suas lembranças da infância na fazenda da família, na região do Périgord.

A Occitania, assim como o mundo indígena, resistiu ao colonialismo interno, que proibiu a escolarização das crianças na língua d´Oc. A língua foi enterrada, mas como uma semente renasceu. Hoje, as estimativas indicam a existência de 4 milhões de falantes, cujas conquistas de escola bilingue se encontram ameaçadas. Por isso, o conselheiro regional da Aquitânia, David Grosclaude, iniciou no dia 27 de maio uma greve de fome. Os jornais franceses de circulação nacional nada noticiaram, mas nas redes sociais milhares de pessoas manifestaram imediatamente seu apoio.

No dia 3 de junho a greve vitoriosa foi interrompida, com a assinatura de um documento pelos ministros da Educação e da Cultura, que garantiram a criação de uma Secretaria Pública da Língua Occitana e os recursos para seu funcionamento. Daqui, do Diário do Amazonas, saudamos o fole do vovô do Roussillon que continua assoprando as brasas da tradição, iluminando o falar occitano. A simpatia não é só dos falantes de português, mas também dos índios no Brasil. Línguas indígenas e língua d´Oc: le même combat!
P.S. Agradeço as valiosas indicações de Mathias Gibert no seu artigo “Une France sauvage: autour de la ‘colonisation intérieure” e outras sugeridas em troca de e-mails.

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